Alguns pontos críticos da vida das sociedades africanas. Justino Pinto de Andrade
e o tema do próximo Sínodo para a África
(11/9/2009) As mudanças políticas ocorridas no mundo, após a queda do Muro de Berlim
e o consequente desmantelamento dos regimes totalitários no Leste da Europa, alimentaram
muitas esperanças e sonhos entre os africanos.
Tal movimento de democratização
assumiu contornos planetários e permitiu o surgimento em África de muitas formações
político-partidárias e de algumas organizações da sociedade civil. Pareceu mesmo termos
entrado numa Nova Era, com a ampliação do nosso espaço de liberdade. Pensámos que
a Nova Era seria capaz de nos conduzir à extinção de muitos dos velhos conflitos internos
que nos dilaceraram desde a época das independências. Tal leitura dos Novos Tempos
teve alguma dose de equívoco, pois, se é verdade que teimam em manter-se alguns dos
velhos conflitos, também é verdade que emergiram outros conflitos, igualmente de difícil
resolução.
A não resolução dos velhos conflitos e o surgimento de outros só
pode ser explicada pela persistência das razões que lhes deram origem. Será propriamente
porque não havia multipartidarismo? Será porque o multipartidarismo não se transformou
em verdadeira democracia? Ou será porque a democracia em si mesma não resolve todos
os problemas sociais e políticos que dilaceram África?
Persistem rivalidades
e até conflitos étnicos em algumas regiões, muitos deles descambando em massacres
ou em tentações separatistas. Lembro-me, por exemplo, do Ruanda, República Democrática
do Congo, Nigéria, Quénia, Sudão.
Persistem movimentações separatistas em algumas
partes do nosso continente, inclusive ali onde se permitiu a implantação de partidos
políticos e onde se realizaram eleições. Temos, pois, que convir que o problema de
fundo nem sempre é o direito de se realizarem eleições para escolher os Deputados
ou o Chefes de Estado. O problema também não se resolve apenas pela escolha entre
Estado Unitário ou Estado Federal. A Nigéria é um Estado Federal e lá desenvolvem-se
movimentos emancipalistas, muitas vezes recorrendo à luta armada e à sabotagem de
objectivos económicos fundamentais.
Nalguns casos, a instabilidade que se seguiu
às nossas independências pode ter tido origem no modelo de Estado que não soube comportar
e acomodar a grande pluralidade étnica existente em certos países. Noutros casos,
pode ter sido o sistema político monopartidário que atrofiou as sociedades, pois o
modelo monopartidário não cria suficientes canais para a expressão livre das vontades
dos cidadãos. E mais: esse modelo estimula a solidificação de hegemonias internas
que conferem demasiados privilégios e vantagens a poucos e coloca os restantes numa
situação incómoda, sem direitos fundamentais. As independências africanas permitiram
que determinadas elites tomassem as rédeas do poder em suas mãos e ampliassem demasiado
as suas influências e privilégios, descurando os direitos dos outros.
Há Estados
que foram construídos pela imposição de ditaduras, umas com tons políticos de esquerda,
outras vestidas com as cores políticas da direita. Penso, contudo, que ninguém tem
dúvidas de que uma ditadura, seja ela de esquerda ou de direita, é sempre uma ditadura.
Mesmo que a ditadura seja apresentada publicamente como a expressão da vontade da
maioria, no final, ela só favorece uma minoria ou um grupo restrito de pessoas. Todas
as ditaduras que se instalaram em África disseram-se teoricamente vocacionadas para
resolver os problemas decorrentes da colonização e com o objectivo de criar harmonia
e paz social. Mas a experiência prática veio mostrar que era uma falácia: o resultado
final saldou-se no açambarcamento do poder por parte de representantes de algumas
elites dominantes, ou até mesmo por famílias. Veja-se como se começa a tornar hábito
os filhos sucederem os pais no poder, como se fossem dinastias.
Os movimentos
separatistas serão, em parte, fruto de contradições herdadas do período colonial e
que não foram resolvidas. Mas eles podem também ser o resultado de contradições introduzidas
no exercício dos poderes instituídos e vigentes. O desafio que agora se nos apresenta
é precisamente o de descortinarmos os velhos problemas e os problemas que nós próprios
criámos com a nossa má governação.
Nos tempos modernos, e em repúblicas, não
é concebível nem aceitável a perpetuação de líderes no poder, como se fossem insubstituíveis.
Temos também que nos questionar sobre o porquê que, nos países europeus, por exemplo,
funciona a alternância democrática e ela não funciona em África. Será por imaturidade
dos povos africanos, ou será que a democracia não é tomada de um modo sério por muitos
actores políticos africanos?
É escandalosa a forma como em África se manipula
a sociedade civil. É escandalosa a forma como os poderes instituídos tomam em mãos
as rédeas do poder para depois asfixiarem as liberdades individuais ou mesmo das organizações
de carácter cívico.
O Resultado de tudo isso, acrescido à pesada herança colonial,
só pode ser o que vos apresento de seguida.
Durante a última década do século
passado, as economias da África Sub-Sahariana regrediram a uma taxa média anual de
-0,7%. Nos primeiros seis anos do presente século, o crescimento médio anual desse
conjunto de países situou-se em torno dos 2,0%.
Antes da eclosão da presente
crise económica, o crescimento económico do conjunto dos países africanos já se situava
ao redor dos 5,5%, augurando-se melhores dias para o conjunto das suas populações
e resultados mais positivos no combate à fome e no alcance de alguns dos Objectivos
de Desenvolvimento do Milénio definidos palas Nações Unidas. Fruto da crise económica
e financeira que o mundo hoje conhece, a trajectória ascendente foi praticamente interrompida,
dando lugar a um crescimento económico que nem ultrapassa a taxa de crescimento demográfico.
Devo
porém, dizer que muito desse desempenho económico se deveu, sobretudo, ao crescimento
das exportações de petróleo, o que pode ser ilustrado pelo facto de a taxa média de
crescimento das economias dos países exportadores de crude ter sido três vezes superior
à dos países africanos não exportadores de petróleo.
As exportações africanas
concentram-se cada vez mais num conjunto de itens, em especial, os de origem mineral.
Somos seguramente o continente com um maior índice de concentração das exportações,
o que tem implicações profundas na distribuição geográfica da riqueza e na criação
de empregos.
Se olharmos para África na perspectiva das suas sub-regiões de
integração económica, é fácil distinguir algumas disparidades alarmantes. Tais disparidades
podem até, de algum modo, ajudar-nos a compreender a geografia dos nossos conflitos.
Os países pertencentes à Comunidade Económica da África Central, por exemplo, pouco
ou nenhum peso têm no comércio internacional. É aí que se vão concentrando muitos
conflitos e os mais sangrentos e recorrentes.
Cerca de dois terços dos africanos
vivem em áreas rurais – mas o nosso nível de produtividade agrícola é o mais baixo
do mundo. Somos deficitários em termos alimentares.
Uma vista atenta sobre
os balanços comerciais dos países africanos mostra-nos que os países exportadores
de petróleo e de outros minerais são, por norma, deficitários em alimentos. São os
casos da Angola, Nigéria, Gabão, etc. Há países africanos que sobrevivem à custa das
remessas de alimentos doados pela comunidade internacional, muito em especial aqueles
países onde subsistem graves conflitos internos ou mesmo ali onde as hostilidades
têm lugar nas fronteiras dos Estados. O Zimbabué é o maior exemplo de país africano
que destruiu a sua base agrícola, fruto de uma política desastrosa que o remeteu para
a condição de receptor de ajuda, sob a forma de doação de alimentos. Do meu ponto
de vista, o Zimbabué é claramente um exemplo a não seguir.
Mesmo com o assinalável
crescimento dos últimos anos, as economias africanas ainda são insignificantes, quando
comparadas, por exemplo, com as de certos países emergentes: o Produto Interno Bruto
da África Sub-Sahariana corresponde a 28% do PIB da China, a 69% do PIB do Brasil,
ou a 80% do PIB da Índia.
Se olharmos para o interior da própria região, notamos
uma acentuada assimetria no que diz respeito à criação de riqueza. A África do Sul,
a maior economia africana, detém uma quota-parte equivalente a 33% do PIB. Se juntarmos
os PIB’s da África do Sul e da Nigéria, elas concentram em si mais de metade do Produto
Interno Bruto dos países africanos situados ao sul do Sahara.
A enorme disparidade
entre os países africanos pode também ser analisada por intermédio da repartição teórica
do rendimento entre os países: o PIB per capita das Ilhas Seicheles é 77 vezes superior
ao da República Democrática do Congo, por exemplo. É evidente que em termos demográficos
a RDC é um gigante e as Ilhas Seicheles são um anão, mas esta classificação também
é válida se tivermos em conta o volume dos recursos naturais de cada um deles.
Fruto
da conjugação de um conjunto de factores, há países africanos que conhecem uma verdadeira
explosão demográfica, não obstante se assinalem níveis de mortalidade bastante elevados.
A elevada mortalidade é coberta e até mesmo ultrapassada pelos nascimentos de novas
pessoas. São essas novas pessoas que, depois, passam a sobreviver em condições bastante
precárias, praticando uma agricultura tecnologicamente atrasada e, por isso, com baixos
rendimentos por hectare e per capita.
Nós, os africanos, somos os que estamos
mais sujeitos à forte incidência de doenças como a malária, cólera, tuberculose, doenças
diarreicas agudas, etc. O resultado de tais incidências é a nossa curta esperança
de vida ao nascer. Essas doenças, e outras como a SIDA, têm provocado verdadeiras
razias em determinadas zonas do nosso continente. A SIDA chega ao ponto de inverter
a trajectória ascendente que a esperança de vida teve em certos países, sobretudo
na região austral. Posso citar exemplos como a África do Sul, Moçambique, Suazilândia,
Botsuana, Lesoto, etc., talvez os países que são das maiores vítimas desse flagelo.
Em contrapartida, as Ilhas Maurícias estão com uma esperança de vida próxima da dos
países desenvolvidos, 73,2 anos.
Por isso, não basta dizermos que a África
tem um grande potencial de riqueza. É fundamental que esse potencial se transforme
em riqueza verdadeira. E isso faz-se com políticas correctas.
A Nigéria, por
exemplo, o país mais populoso do nosso continente, não conseguiu adoptar uma política
agrícola adequada, depois de ter passado a explorar o seu rico manancial petrolífero
– hoje, a Nigéria, fértil em terras, importa alimentos. Tal como Angola que, fruto
da guerra e de políticas económicas também erradas, transformou-se depois da independência
em importador de alimentos.
Uma retoma da produção agrícola em moldes empresariais
e em grandes volumes, assim como um assegurado apoio à produção camponesa poderá fazer
de Angola, não só auto-suficiente, mas também exportador de bens alimentares e de
produtos agrícolas para transformação industrial.
África é o continente com
a população mais jovem. Temos uma pirâmide etária de base muito larga, com a população
com menos de 18 anos a constituir cerca de 50% do total. Isso tem implicações que
não podem ser descuradas. Por exemplo, exige um esforço muito grande na criação de
escolas, creches, jardins-de-infância.
Pelo menos teoricamente, a população
situada entre 0 e os 14 anos é uma camada populacional improdutiva. Todavia, dados
seguros apontam para o facto de perto de um terço das crianças com idades compreendidas
entre os 10 e os 14 anos de idade estarem já a trabalhar. Tais crianças-trabalhadoras
ajudam a aumentar o rendimento do agregado familiar. Mas, exercendo essa actividade
numa idade tão precoce corta-lhes a possibilidade de estudar, contribuindo, assim,
para a perda do seu enorme potencial.
Sem gente devidamente qualificada não
será possível retirar o continente africano do estado de pobreza em que se encontra.
Há, pois, que apostar na formação dos jovens, dando-lhes a possibilidade real de conduzirem
os seus próprios destinos e de transformarem os recursos naturais com que Deus dotou
o nosso continente em riqueza que possa ser usufruída pelos seus filhos.
Os
jovens constituem perto de 40% da população em idade activa. O ritmo com que hoje
se criam os empregos não tem sido suficiente para absorver a força de trabalho potencial
que existe nos nossos países, daí os elevados índices de desemprego, o que depois
conduz à marginalidade e à criminalidade.
É bom que se criem escolas. Mas não
basta: é necessário que a dinâmica económica consiga gerar empregos em quantidade
e suficientemente remunerados para a juventude puder alimentar boas expectativas.
É
evidente que nem tudo é mau. A África também tem coisas boas e muito belas, mas eu
penso que o Sínodo dos Bispos Africanos não se reuniu para saudar realizações ou homenagear
pessoas. O Sínodo dos Bispos Africanos tem a intenção, entre outras tarefas, de iluminar
os caminhos dos fiéis e dos povos, dizendo o que vai mal para que a nossa caminhada
seja mais fácil e menos pedregosa. Bem hajam! JUSTINO PINTO DE ANDRADE
Professor Titular de Economia e Director da Faculdade de Economia
e Gestão da Universidade Católica de Angola Radio Vaticano