A Enciclica "Caritas in veritate": a lógica da caridade
(15/7/2009) "A verdade abre e une as inteligências no lógos do amor: tal é o anúncio
e o testemunho cristão da caridade. No actual contexto social e cultural, em que aparece
generalizada a tendência de relativizar a verdade, viver a caridade na verdade leva
a compreender que a adesão aos valores do cristianismo é um elemento útil e mesmo
indispensável para a construção duma boa sociedade e dum verdadeiro desenvolvimento
humano integral" (Caritas in veritate, nº 4) Gostaria de começar o meu breve
comentário à mais recente Carta Encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate,
por esta citação, que me parece concentrar em si os principais objectivos de todo
o documento. E gostaria de começar por me fixar no termo logos, que permite
variadas traduções. Neste caso, prefiro concentrar-me naquela que originou, nas nossas
línguas, a expressão lógica. De facto, o logos ou o discurso, também
o pensamento sobre algo, implica uma lógica própria. Assim, poderíamos traduzir a
expressão "logos do amor" por lógica do amor. Ora, trata-se de uma expressão
algo estranha. De facto, estamos habituados a reduzir a lógica ao âmbito matemático-científico,
quando muito ao contexto argumentativo, o que parece não permitir falar de uma lógica
do amor, pois o amor escaparia a toda a lógica. Ora, toda esta Encíclica, precisamente
porque liga a caridade com a verdade e vice-versa, assenta precisamente num discurso
sobre a lógica do amor. Nesse sentido, proponho um comentário baseado nos diversos
níveis dessa lógica, que me parecem corresponder, também, à lógica interna do documento. 1.
O primeiro nível tem a ver com a fundamental compreensão bíblico-cristã da noção de
verdade. Poderíamos chamar-lhe o nível da lógica da acção. De facto, a noção
bíblica de verdade é bastante mais abrangente do que a que a reduz ao puro nível do
discurso e mesmo da ciência. Porque, no contexto bíblico - que é o contexto cristão
- a verdade salva e liberta, possui por isso uma força performativa própria, realizando
algo na nossa existência. Em correspondência a essa força activa da verdade, a verdade
vivida pelo cristão é uma verdade pragmática, pois a verdade é para ser feita, não
apenas para ser dita ou pensada. É claro que também deve ser dita e pensada - pois
isso é já fazer algo. Mas, a finalidade última da verdade é uma pragmática que transforme
os corações e, por essa via, toda a realidade, sobretudo na sua dimensão sócio-cultural. Por
isso, o cristianismo não é simplesmente uma filosofia, se entendermos por isso um
conjunto abstracto de ideias que dizem respeito, mais ou menos, à realidade. É claro
que as ideias possuem uma força transformadora própria. Mas podem fechar-se no puro
e abstracto jogo ideológico de si mesmas. Nesse sentido, o cristianismo não assenta
numa ideia. Também não pode, como tal, ser reduzido a uma espiritualidade desencarnada,
que apenas sirva para consolo interior dos indivíduos. Por mais que tenha havido leituras
e práticas do cristianismo que o reduziram a essa dimensão espiritual e privada, essas
reduções têm significado sempre um desvio da sua verdade. Na história, como na actualidade,
esse desvio - a que poderíamos chamar genericamente gnosticismo - tem sido uma das
maiores tentações do cristianismo. Também na actualidade, a tentação gnóstica continua
a lançar a sua sombra. Muitas vezes, essa sombra surge no próprio interior do cristianismo,
por impulso daqueles grupos que o reduzem a uma actividade interna, orientada para
uma dimensão do indivíduo a que se vai chamando «espiritualidade» e que o isola do
quotidiano, da dimensão «política», que fica assim relegada para o âmbito do puramente
«profano». O cristão atingido por esta tendência, ou se refugia numa vida ideal, alheia
ao mundo que o rodeia, ou divide a sua vida esquizofrenicamente entre práticas cristãs
(apenas espirituais) e a prática quotidiana, que nada tem a ver com as convicções
cristãs. A própria sociedade, sobretudo por efeitos da modernidade europeia, habituou-se
a compartimentar os sujeitos e as instituições, relegando o cristianismo e as suas
práticas para o âmbito privado, negando-lhe por isso pertinência pública. Esse é um
modo sócio-político de contradizer a lógica cristã, como lógica da acção, concebida
como acção integral. E muitos estados ditos «laicos» baseiam nessa perspectiva a sua
crítica - e mesmo a sua proibição, muitas vezes - da intervenção pública dos cristãos,
pessoal ou institucionalmente considerados. Mas a lógica - a verdade - do cristianismo
é precisamente a lógica do amor, que é de ordem prática e não conhece recantos simplesmente
privados, pois envolve a pessoa toda e todas as pessoas. Por isso, na lógica da sua
acção estão incluídos todos os problemas e todas as possibilidades da humanidade sua
contemporânea. Por isso se torna legítima - e mesmo exigida - a sua intervenção a
propósito de todas essas questões, que estão ligadas à acção quotidiana dos nossos
contemporâneos, cristãos ou não. É nesse contexto que se justifica a denominada «doutrina
social da Igreja». Não como contributo científico nos âmbitos da economia, da política
ou da sociologia. Mas como leitura de tudo isso, no contexto da sua lógica própria.
E como proposta para o bem-estar integral - com significado salvífico - de todos os
humanos. E essa lógica, por ser a lógica da caridade, tem por finalidade, não apenas
fazer uma leitura crítica das realizações humanas, mas também sugerir realizações
específicas, que possam ajudar a que a lógica da caridade vá dando frutos, ao longo
da história humana. É claro que, dada a especificidade da lógica da caridade, as realizações
históricas serão sempre limitadas e falíveis, mesmo que se inspirem no amor que salva.
Porque só Deus salva e só Ele terá a última palavra sobre a história humana. 2.
Um dos elementos importantes da acção cristã é, por isso mesmo, a consciência ou reconhecimento
de que a verdade, que deve ser feita, não é uma verdade já feita pelos humanos, consoante
os seus interesses e as suas perspectivas. Trata-se de uma verdade que é sempre dada,
como tarefa a realizar. Nesse sentido, um dos elementos básicos da lógica da caridade
é o facto de se tratar de uma lógica do dom. Antes de tudo, porque a verdade
que fundamenta essa lógica é uma dádiva, em si mesma, e não um produto nosso. Por
essa razão, a dádiva que, antes de tudo, se nos dá para ser feita, é a própria verdade.
A verdade dada é, portanto, para que reconheçamos a dádiva como verdade - verdade
de Deus e verdade dos humanos. Assim, a verdade é-nos dada, para ser realizada,
entre nós, enquanto dádiva, enquanto doação mútua. Ora, a dádiva é da ordem do gratuito.
O que se dá, não se dá por interesse em receber algo em troca, muito menos para daí
retirar algum lucro. Se assim não for, não existe dádiva ou dom, mas apenas negócio,
mercado. A verdade da caridade, como verdade do ser humano, na perspectiva cristã,
é que as relações humanas se devem medir por esta capacidade de dar gratuitamente.
Mesmo que haja níveis de permuta inter-humana que não sejam gratuitos, o nível da
gratuidade deve ser o mais profundo e fundamental. Esta carta encíclica, por ser
uma carta essencialmente de doutrina social da Igreja, afirma claramente que a lógica
do dom se deve aplicar, também, ao nível das relações económicas, mesmo ou sobretudo
da macro-economia. O capítulo terceiro é todo dedicado à exploração dessas possibilidades.
É claro que se trata de uma proposta que parece desconcertante, para muitos mesmo
impossível. Mas nisso reside, precisamente, o excesso da lógica do dom gratuito, em
relação a todos os sistemas simplesmente «justos», se entendermos a justiça do ponto
de vista puramente comutativo, retributivo ou distributivo. Habitualmente, os
sistemas económicos mais recentes - denominados genericamente capitalistas - assentam
na lógica do lucro, pretendendo que esse seja o motor do progresso e desenvolvimento
dos povos. Mas, sobretudo devido à recente crise económico-financeira global, parece
tornar-se cada vez mais evidente que essa lógica não é absoluta e que parece não conduzir
aos resultados que promete. Em realidade, apenas serve para realizar o interesse de
poucos. Nesse contexto, Bento XVI lança o desafio à aplicação pragmática, nas relações
económicas à escala global, da dimensão do gratuito, da dádiva desinteressada. 3.
Porque só a lógica da dádiva permite criar verdadeira solidariedade humana, a nível
planetário. Porque dela resulta a lógica da comunhão, única capaz de criar
verdadeira comunidade humana, entre todos os povos e pessoas. De facto, o dom, dado
a todos e para ser dado por todos, origina comunidade, no amor. Outro modo de relação
entre os humanos e entre os povos apenas origina dinâmicas de poder, pois parte sempre
de arrogantes pretensões da capacidade de quem toma a iniciativa. Muitas vezes, essa
lógica do poder afecta mesmo aquilo que, externamente, parece dádiva, sobretudo na
relação entre países ricos e países pobres. Ora, cada vez se torna mais evidente o
fracasso a que está destinado um sistema que se baseia em relações de poder - poder
como capacidade e poder como domínio. É no sentido de superar esse modo de relação
que Bento XVI lança a proposta de uma lógica de comunhão, assente no acolhimento de
um dom que nos é dado e na prática desse dom, dando. Daí deve resultar uma nova lógica
económica, assente precisamente na economia do dom e não na economia do poder
e do lucro. Entenda-se aqui o termo economia como aquele âmbito em que se leva
à prática das relações interpessoais e inter-institucionais a lógica da caridade,
como pragmática e concretização dessa mesma lógica. É nesse sentido que cristianismo
não se limita a dar indicações correctivas aos sistemas económicos. Pode acolher e
mesmo propor certas práticas económicas como modos de dar corpo concreto à lógica
do amor, ao serviço da qual se encontra. Esta lógica do amor pode ser energia moral
para os sistemas económicos, que só estão ao serviço do ser humano se assentarem em
convicções éticas. Isso fará assentar os sistemas económicos e mesmo políticos
numa lógica em que a dimensão ética, no bom sentido do termo, seja fundamental: trata-se
da lógica da responsabilidade. Bento XVI, quando propõe esta lógica da responsabilidade
pessoal e colectiva, local e planetária, pensa explicitamente na superação da pura
lógica do mercado e da pura lógica do estado. A primeira, assente simplesmente no
dinamismo do lucro, pensado individualmente, perde do horizonte a comunidade humana
e cada pessoa concreta, conduzindo a desumanidades, que hoje se tornam cada vez mais
evidentes e que acabam por se virar contra os seus próprios autores; a segunda, baseada
em jogos de influências e em certo domínio colectivista, acaba por discriminar grande
parte da humanidade, originando mais divisão do que comunhão. Toda a actividade económica
e política, independentemente de os seus agentes serem ou não cristãos, deverá estar
determinada pela lógica da responsabilidade total, caso queira servir verdadeiramente
os humanos, sem discriminação de pessoas nem povos. 4. A última parte da Encíclica
é dedica à exploração do significado de uma lógica própria, em que desembocam, na
prática, todas as outras dimensões da lógica da caridade: trata-se da lógica da
relação. Partindo de uma fundamentação teológica dessa lógica (precisamente
por referência à relação trinitária, como fonte de todo o ser-em-relação), Bento XVI
apresenta o modelo da relação familiar como fundamental para a compreensão do ser
humano como ser-em-relação. Porque a relação familiar assenta na relação inter-pessoal,
vivendo da relação entre pessoas livres, diferentes, que se amam. Por isso, supera
todos os modos de relação assentes no poder ou na dissolução das diferenças pessoais.
Nesse sentido, considera importante, por exemplo, que se analisem criticamente
outras tradições religiosas, pois podem colocar em risco este modo de relação, no
respeito da liberdade pessoal. Os sistemas de organização social encontram aqui o
critério da sua avaliação, pelo menos na perspectiva cristã, que se pretende universal.
Ou são respeitadores de cada ser humano, na sua integridade, e respeitadores de todos
os seres humanos, na sua igualdade, ou não fazem parte da lógica da caridade, que
é a verdade de Deus para os humanos. E com base nessa posição, simultaneamente
dialogante e crítica, que a lógica da caridade se propõe como verdade para todos.
Ao propor-se, assume uma tarefa pública, que terá que arrancar o cristianismo da pura
reunião de sacristia. Ao mesmo tempo, sendo uma proposta pública, entra no diálogo
com outros crentes e mesmo com os não crentes. Porque a finalidade da lógica da caridade
é, precisamente, a relação no respeito pelas diferenças. Mas a lógica da caridade
só é autêntica se se assumir como lógica da verdade, proposta para todos. É nesse
sentido que deverão ser lidas estas densas páginas, que Bento XVI dirige a todos os
cristãos, assim como a todos os humanos de boa vontade. Mas, como a verdade é para
ser feita, esta é só a primeira parte de uma proposta cristã para o nosso mundo contemporâneo. João
Manuel Duque, teólogo, secretário da Comissão Episcopal da Doutrina da Fé e Ecumenismo(Em
Ecclesia)