A Cruz de Cristo deu um sentido novo à morte de cada homem e mulher e é motivo de
esperança para todos: a pregação de Sexta Feira Santa na Basilica de São Pedro, do
Padre Raniero Cantalamessa
(10/4/2009) Christus factus est pro nobis oboediens usque ad amortem, mortem autem
crucis”: Por nós, Cristo se fez obediente até á morte. E morte de cruz”. No segundo
milénio do nascimento do apóstolo Paulo, relembramos algumas das suas palavras familiares
sobre o mistério da morte de Cristo que estamos a celebrar. Ninguém melhor do que
ele nos pode ajudar a compreender o significado e o alcance.
Aos Coríntios
escreve em forma de manifesto: "Os Judeus pedem milagres a os Gregos buscam a sabedoria,
nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os Judeus, loucura para os pagãos;
mas para aqueles que são chamados, seja Judeu ou Grego, pregamos Cristo, força de
Deus e sabedoria de Deus” (1 Cor 1, 22-24). A morte de Cristo tem um alcance universal:
“O amor de Cristo constrange - nos, considerando que, se um só morreu por todos,
logo todos morreram” (2 Cor 5, 14). A sua morte deu um sentido novo à morte de cada
homem e mulher.
Aos olhos de Paulo a cruz assume uma dimensão cósmica. Sobre
ela Cristo derrubou o muro de separação, reconciliou os homens com Deus e entre si,
destruindo a inimizade (cf. Ef 2, 14-16). A partir daí a antiga tradição desenvolverá
o tema da cruz como árvore cósmica que, com o braço vertical, une céu e terra e, com
o braço horizontal, reconcilia entre si os diversos povos do mundo. Evento cósmico
e ao mesmo tempo personalíssimo: “me amou e se entregou por mim” (Gal 2, 20). Cada
homem, escreve o Apóstolo, é um "daqueles por quem Cristo morreu" (Rom 14, 15).
De
tudo isso nasce o sentimento da cruz, já não como castigo, rejeitando o argumento
de aflição, mas glória e louvor do cristão, isto é, como uma jubilosa segurança, acompanhada
pela comovida gratidão, que move o homem na fé: “Quanto a mim, que eu me glorie somente
na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo” (Gal 6, 14).
Paulo plantou a cruz no
centro da Igreja como mastro principal no centro do navio; tornou-a fundamento e centro
de gravidade de tudo. Fixou para sempre o quadro do anuncio cristão. Os evangelhos,
escritos depois dele, seguiram o esquema, fazendo do relato da paixão e morte de Cristo
a base sobre a qual tudo está orientado.
Fica-se atónito perante empresa
levada por diante pelo Apóstolo. Para nós hoje é relativamente fácil ver as coisas
nesta luz, depois da cruz de Cristo, como dizia Agostinho, ter brilhado na terra
e brilhar agora sobre a coroa do rei [1]. Quando Paulo escrevia, ela era ainda sinônimo
da maior ignomínia, algo que não se devia nem nominar entre pessoas educadas.
*
* * A razão do ano paulino não é tanto a de conhecer melhor o pensamento do Apóstolo
(isso os estudiosos fazem desde sempre, sem contar que a pesquisa científica requer
tempos mais longos do que um ano); é mais, como recordou em muitas ocasiões o Santo
Padre, a de aprender de Paulo como responder aos desafios actuais da fé.
Um
desses desafios, talvez o mais aberto e mais conhecido até hoje, traduziu-se num
slogan publicitário escrito nos meios de transporte público de Londres e de outras
cidades europeias: “Deus provavelmente não existe. Portanto deixe de se preocupar
e aproveite a vida”: There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your
life”.
O elemento de maior preocupação desse slogan não é a premissa “Deus
não existe”, mais a conclusão: “Aproveite a vida!” A mensagem subliminar é que a fé
em Deus impede de desfrutar a vida, é inimiga da alegria. Sem essa, existiria mais
felicidade no mundo! Paulo ajuda-nos a dar uma resposta a este desafio, explicando
a origem e o sentido de cada sofrimento, a partir daquele de Cristo.
Por que
“era necessário que Cristo padecesse para entrar na sua glória”? (Lc 24, 26). A esta
pergunta dá-se algumas vezes uma resposta “fraca” e, em certo sentido, confortável.
Cristo, revelando a verdade de Deus, provoca necessariamente a oposição das forças
do mal e das trevas, e estas, como acontecia nos profetas, levam a sua rejeição e
a sua eliminação. “Era necessário que Cristo padecesse” caminha, portanto, todo no
sentido de “era inevitável que Cristo padecesse”.
Paulo dá uma resposta “forte”
àquela pergunta. A necessidade não é de ordem natural, mas sobrenatural. Nos países
de antiga fé cristã associa-se quase sempre a ideia de sofrimento e de cruz àquela
de sacrifício e expiação: o sofrimento, pensa-se , é necessário para expiar o pecado
a aplacar a justiça de Deus. É isto que provocou, na época moderna, a rejeição de
todas as ideias de sacrifício oferecido a Deus e, por fim, a própria ideia de Deus.
Cristo
deu um conteúdo radicalmente novo à ideia de sacrifício. Nisso “não é mais o homem
a exercitar uma influência sobre Deus para que este se aplaque. Bem ao contrário,
é Deus a agir a fim de que o homem desista da própria inimizade contra ele e contra
o próximo. A salvação não inicia com a busca da reconciliação por parte do homem,
mas sim com a busca de Deus: “Deixai-vos reconciliar com Ele” (1 Cor 2, 6 ss) [3].
O
fato é que Paulo leva a sério o pecado, não o banaliza. O pecado é, para ele, a causa
principal da infelicidade do homem, isto é, a rejeição de Deus, não Deus! Isso prende
a criatura humana na “mentira” e na “injustiça” (Rm 1, 18 ss; 3, 23), condena o próprio
cosmo material à “vaidade” e à “corrupção” (Rm 8, 19 ss.) e é a causa última também
dos males sociais que afligem a humanidade.
Fazem-se análises sem fim da crise
económica em acção no mundo e das suas causas, mas quem ousa meter o machado na raiz
e falar do pecado? O Apóstolo define a avareza insaciável uma “idolatria” (Col 3,5)
e adiciona na desenfreada ganância de dinheiro “a raiz de todos os males” (1 Tm 6,
10). Podemos dizer que está errado? Porque tantas famílias perderam tudo, massas
de operários que ficam sem trabalho, se não pela sede insaciável de lucro por parte
de alguns? A elite financeira e económica mundial tornou - se uma locomotiva louca
que avançava numa corrida desenfreada, sem pensar nos restantes vagões, parados ao
longe. Estávamos a caminhar todos em sentido contrário.
* * *
Com
a sua morte, Cristo não só venceu o pecado, mas também deu um sentido novo ao sofrimento,
também àquele que não depende do pecado de ninguém. Fez- se instrumento de salvação,
um caminho para a ressurreição e a vida. O seu sacrifício produz os seus efeitos não
através da morte, mas sim, graças à superação da morte, isto é, à ressurreição. “Morreu
pelos nossos pecados, ressuscitou pela nossa justificação” (Rm 4, 25): os dois eventos
são inseparáveis no pensamento de Paulo e da Igreja.
É uma experiência humana
universal: nesta vida prazer e dor sucedem-se com a mesma regularidade como a formação
de uma onda no mar, segue uma depressão e um vazio que suga o náufrago. “Algo amargo
– escreveu o poeta pagão Lucrécio – surge do próprio íntimo de cada prazer e nos angustia
no meio das delícias” [4]. O uso da droga, o abuso do sexo, a violência homicida,
ao instante dão a embriaguez do prazer, mas conduzem à dissolução moral, e muitas
vezes também física, da pessoa.
Cristo, com a sua paixão e morte, rebateu a
relação entre prazer e dor. Ele, “em troca da alegria que lhe era dada antes, submete-se
à cruz” (Hb 12,2). Já não um prazer que termina em sofrimento, mas um sofrimento
que leva à vida e à alegria. Não se trata somente de um diverso suceder-se das duas
coisas; é a alegria, deste modo, a ter a última palavra, não o sofrimento, e uma alegria
que durará eternamente. “Cristo ressuscitado dos mortos já não morre ; a morte não
tem poder sobre ele” (Rm 6,9). E não terá nenhum sobre nós.
Esta nova relação
entre sofrimento e prazer reflecte-se no modo de ler o tempo da Bíblia. No cálculo
humano, o dia inicia com a manhã e termina com a noite; para a Bíblia começa com a
noite e termina com o dia: “E foi tarde e foi manhã: primeiro dia”, recita o relato
da criação (Gen 1, 5). Não é sem significado que Jesus morreu à noite e ressuscita
pela manhã. Sem Deus, a vida é um dia que termina na noite; com Deus é uma noite que
termina no dia, e um dia sem ocaso.
Cristo não veio, portanto, para aumentar
o sofrimento humano ou pregar a resignação ; veio para dar-lhe um sentido e anunciar
o fim e a superação. Aquele slogan nos autocarros de Londres e outras cidades é lido
também por pais que possuem um filho doente, por pessoas sozinhas, ou que estão sem
trabalho, por exilados fugitivos dos horrores da guerra, por pessoas que vivem graves
injustiças na vida... Eu procuro de imaginar a sua reacção ao ler as palavras: “Provavelmente
Deus não existe: aproveite, portanto, a vida!” E com quê?
O sofrimento torna
certo um mistério para todos, especialmente o sofrimento dos inocentes, mas sem a
fé em Deus ele torna-se imensamente mais absurdo. Se lhes tiram a última esperança
de resgate. O ateísmo é um luxo que pode ser concedido só aos privilegiados pela vida,
aqueles que possuem tudo, compreendida a possibilidade de dar-se aos estudos e à pesquisa.
*
* *
Não é só a incongruência daquela peça publicitária. “Deus provavelmente
não existe”: portanto, poderá existir, não se pode excluir totalmente que exista.
Mas, querido irmão não crente, se Deus não existe, eu não perdi nada; se, ao contrário,
ele existe, você terá perdido tudo! Devemos quase agradecer aos que lançaram aquela
campanha publicitária; ela tem servido à causa de Deus mais do que muitos dos nossos
argumentos apologéticos. Mostrou a pobreza das suas razões e contribuiu para despertar
muitas consciências adormecidas.
Mas Deus tem uma medida de juízo diferente
e, se vê a boa fé, ou uma ignorância sem culpa, salva ainda quem em vida se tenha
erguido a combatê-lo. Devemos preparar-nos para as surpresas a esse respeito, nós
crentes. “Quantas ovelhas estão fora do redil, exclama Agostinho, e quantos lobos
dentro!”: “Quam multae oves foris, quam multi lupi intus!” [5].
Deus é
capaz de fazer dos seus negadores mais obstinados os apóstolos mais apaixonados. Paulo
é a demonstração disso. Que fizera Saulo de Tarso para merecer aquele encontro extraordinário
com Cristo? Em que é que tinha acreditado, esperado, sofrido? A ele se aplica aquilo
que Agostinho diz de qualquer eleição divina: “Procure o mérito, procure a justiça,
reflita e veja se não há mais do que a graça” [6]. É assim que ele explica a sua chamada:
“Porque eu sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo, porque
persegui a Igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e a graça que ele
me deu não tem sido inútil. Ao contrário, tenho trabalhado mais do que todos eles;
não eu, mas a graça de Deus que está comigo” (1 Cor 15, 9-10).
A cruz de
Cristo é motivo de esperança para todos, e o Ano Paulino, uma ocasião de graça também
para aqueles que não acreditam, mas buscam. Uma coisa fala a favor deles diante de
Deus: o sofrimento! Como o resto da humanidade, os ateus também sofrem na vida, e
o sofrimento, uma vez que o Filho de Deus tomou sobre si, tem um poder redentor quase
sacramental. É um canal, escreve João Paulo II na “Salvifici doloris”, através do
qual a energia salvífica da cruz de Cristo é oferecida à humanidade [7].
Ao
convite a rezar “por aqueles que não acreditam em Deus”, seguirá, em breve, uma comovente
oração em latim do Santo Padre. Traduzida, ela diz: “Deus onipotente e eterno, tu
colocaste no coração do homem uma profunda nostalgia de ti, e só quando te encontramos
vivemos a paz: faz que, superando cada obstáculo, reconheçamos os sinais da tua bondade
e, estimulados pelo testemunho da nossa vida, tenhamos a alegria de crer em ti, um
verdadeiro Deus e Pai de todos os homens. Através de Cristo, nosso Senhor”.