HOMILIA DE BENTO XVI NA MISSA IN COENA DOMINI, NA QUINTA-FEIRA SANTA DE 2009
Amados irmãos e irmãs!
Qui, pridie quam pro nostra omniumque salute pateretur,
hoc est hodie, accepit panem: assim diremos hoje no Cânone da Santa Missa. "Hoc est
hodie": a liturgia de Quinta-feira Santa insere no texto da oração a palavra "hoje",
sublinhando deste modo a dignidade particular deste dia. Foi "hoje" que Ele o fez:
deu-Se a Si mesmo para sempre no sacramento do seu Corpo e do seu Sangue. Este "hoje"
é antes de tudo o memorial da Páscoa de então. Mas é mais do que isso. Com o Cânone,
entramos neste "hoje". O nosso hoje entra em contacto com o seu hoje. Ele faz isto
agora. Com a palavra "hoje", a liturgia da Igreja quer induzir-nos a olhar com grande
atenção interior para o mistério deste dia, para as palavras com que o mesmo se exprime.
Procuremos, pois, escutar de maneira nova a narração da instituição tal como a Igreja,
com base na Escritura e contemplando o próprio Senhor, a formulou.
A primeira
coisa que faz impressão é o fato de a narração da instituição não ser uma frase autônoma,
mas começar por um pronome relativo: qui pridie. Este "qui" liga toda a narração
à frase anterior da oração: "… se converta para nós no Corpo e Sangue de vosso amado
Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo". Deste modo, a narração da instituição está unida
à oração anterior, ao Cânone inteiro e torna-se ela mesma oração. Não é de modo algum
uma simples narração aqui inserida nem se trata de palavras de autoridade, como um
todo à parte, que interromperiam mesmo a oração. É oração. E somente na oração se
realiza o ato sacerdotal da consagração, que se torna transformação, transubstanciação
dos nossos dons de pão e vinho em Corpo e Sangue de Cristo. Rezando neste momento
central, a Igreja está em total acordo com o acontecimento no Cenáculo, porque o agir
de Jesus é descrito com as palavras: "gratias agens benedixit – dando graças, abençoou-o".
Com esta expressão, a liturgia romana dividiu em duas palavras aquilo que, no hebraico
é uma palavra só – berakha –, enquanto em grego já aparece em dois termos: eucharistía
e eulogía. O Senhor dá graças. Ao agradecermos, reconhecemos que algo é dádiva que
provém de outrem. O Senhor agradece e assim restitui a Deus o pão, "fruto da terra
e do trabalho do homem", para de novo o receber d’Ele. Agradecer torna-se abençoar.
O que foi entregue nas mãos de Deus, volta d’Ele abençoado e transformado. A liturgia
romana tem razão quando interpreta a nossa prece neste momento sagrado por meio das
palavras: "oferecemos", "suplicamos", "pedimos que aceiteis", "que abençoeis estas
ofertas". Tudo isto se encerra na palavra "eucharistia".
Há outra particularidade
na narração da instituição referida no Cânone Romano, que queremos meditar nesta hora.
A Igreja orante fixa o olhar nas mãos e nos olhos do Senhor. Quer de certo modo observá-Lo,
quer perceber o gesto do seu rezar e do seu agir naquela hora singular, encontrar
a figura de Jesus por assim dizer também através dos sentidos. "Ele tomou o pão em
suas santas e adoráveis mãos…". Olhamos para aquelas mãos com que Ele curou os homens;
mãos com que abençoou as crianças; mãos que impôs sobre as pessoas; mãos que foram
cravadas na Cruz e que para sempre conservarão os estigmas como sinais do seu amor
pronto a morrer. Agora somos nós encarregados de fazer o que Ele fez: tomar nas mãos
o pão para que, através da oração eucarística, seja transformado. Na Ordenação Sacerdotal,
as nossas mãos foram ungidas, para que se tornassem mãos de bênção. Peçamos ao Senhor
que as nossas mãos sirvam cada vez mais para levar a salvação, levar a bênção, tornar
presente a sua bondade.
Da introdução à Oração Sacerdotal de Jesus (cf. Jo
17, 1), o Cânone toma as palavras: "Levantando os olhos ao céu, para Vós, Deus, seu
Pai todo-poderoso…". O Senhor ensina-nos a levantar os olhos e, sobretudo, o coração:
a levantar o olhar, afastando-o das coisas do mundo; a orientar-nos na oração para
Deus e assim nos erguermos. Num hino da Liturgia das Horas, pedimos ao Senhor que
guarde os nossos olhos, para que não acolham nem deixem entrar em nós "vanitates"
– as vaidades, as nulidades, aquilo que não passa de ilusão. Pedimos que, através
dos olhos, não entre em nós o mal, falsificando e manchando assim o nosso ser. Mas
queremos rezar principalmente para ter olhos que vejam tudo o que é verdadeiro, esplendoroso
e bom; a fim de nos tornarmos capazes de ver a presença de Deus no mundo. Pedimos
para vermos o mundo com olhos de amor, com os olhos de Jesus, reconhecendo assim os
irmãos e irmãs que precisam de nós, que estão à espera da nossa palavra e da nossa
ação.
Depois de tê-lo abençoado, o Senhor parte o pão e distribui-o aos discípulos.
Partir o pão é o gesto do pai de família que se preocupa dos seus e lhes dá aquilo
de que têm necessidade para a vida. Mas é também o gesto da hospitalidade com que
o estrangeiro, o hóspede é acolhido na família sendo-lhe concedido tomar parte na
sua vida. Partir-partilhar é unir. Através da partilha, cria-se comunhão. No pão repartido,
o Senhor distribui-Se a Si próprio. O gesto de partir alude misteriosamente também
à sua morte, ao amor até à morte. Ele distribui-Se a Si mesmo, verdadeiro "pão para
a vida do mundo" (cf. Jo 6, 51). O alimento de que o homem, no mais fundo de si mesmo,
tem necessidade é a comunhão com o próprio Deus. Dando graças e abençoando, Jesus
transforma o pão: já não dá pão terreno, mas a comunhão consigo mesmo. Esta transformação,
porém, quer ser o início da transformação do mundo, para que se torne um mundo de
ressurreição, um mundo de Deus. Sim, trata-se de transformação: do homem novo e do
mundo novo que têm início no pão consagrado, transformado, transubstanciado.
Dissemos
que partir o pão é um gesto de comunhão, é unir através do partilhar. Deste modo,
no próprio gesto já se alude à natureza íntima da Eucaristia: esta é agape, é amor
que se tornou corpóreo. Na palavra "agape", compenetram-se os significados de Eucaristia
e amor. No gesto de Jesus que parte o pão, o amor que se participa alcançou a sua
radicalidade extrema: Jesus deixa-Se fazer em pedaços como pão vivo. No pão distribuído,
reconhecemos o mistério do grão de trigo que morre e assim dá fruto. Reconhecemos
a nova multiplicação dos pães, que deriva da morte do grão de trigo e continuará até
ao fim do mundo. Ao mesmo tempo vemos que a Eucaristia não pode jamais ser apenas
uma ação litúrgica; só está completa, quando a agape litúrgica se torna amor no dia
a dia. No culto cristão, as duas coisas tornam-se uma só: ser cumulados de graça pelo
Senhor no ato cultual e o culto do amor para com o próximo. Nesta hora, peçamos ao
Senhor a graça de aprender a viver cada vez melhor o mistério da Eucaristia de tal
modo que assim tenha início a transformação do mundo.
Depois do pão, Jesus
toma o cálice do vinho. O Cânone Romano qualifica o cálice que o Senhor dá aos discípulos
como "praeclarus calix" (como cálice sagrado), aludindo assim ao Salmo 23/22, o Salmo
que fala de Deus como Pastor poderoso e bom. Lê-se nele: "Diante de mim, preparastes
uma mesa, sob o olhar dos meus inimigos… o meu cálice transborda" – calix praeclarus.
O Cânone Romano interpreta esta expressão do Salmo como uma profecia, que se realiza
na Eucaristia: Sim, o Senhor prepara-nos a mesa no meio das ameaças deste mundo e
dá-nos o cálice sagrado – o cálice da grande alegria, da verdadeira festa, pela qual
todos anelamos – o cálice cheio do vinho do seu amor. O cálice significa as bodas:
agora chegou a "hora", a que de forma misteriosa tinham aludido as bodas de Caná.
Sim, a Eucaristia é mais do que um banquete, é uma festa de núpcias. E estas núpcias
fundam-se na autodoação de Deus até à morte. Nas palavras da Última Ceia de Jesus
e no Cânone da Igreja, o mistério solene das núpcias esconde-se sob a expressão "novum
Testamentum". Este cálice é o novo Testamento, "a nova Aliança no meu Sangue" – assim
a frase de Jesus sobre o cálice é referida por Paulo, na segunda leitura de hoje (1
Cor 11, 25). O Cânone Romano acrescenta "da nova e eterna Aliança", para exprimir
a indissolubilidade do laço nupcial de Deus com a humanidade. O motivo pelo qual as
antigas traduções da Bíblia não falam de Aliança, mas de Testamento, deve-se ao fato
de não serem dois contraentes de nível igual que se encontram, mas entra em ação a
distância infinita entre Deus e o homem. Aquilo que designamos por nova e antiga Aliança
não é um ato acordado entre duas partes iguais, mas dom meramente de Deus que nos
deixa em herança o seu amor, nos deixa a Si mesmo. É certo que Ele, superando toda
a distância através deste dom do seu amor, nos torna depois verdadeiramente seus "parceiros"
e realiza-se o mistério nupcial do amor.
Para se poder compreender em profundidade
o que ali sucede, devemos escutar ainda mais atentamente as palavras da Bíblia e o
seu significado originário. Os estudiosos dizem-nos que, nos tempos remotos de que
falam as histórias dos Patriarcas de Israel, "ratificar uma aliança" significa "entrar
com outros numa ligação assente sobre o sangue, ou seja, acolher o outro na própria
federação e assim entrar numa comunhão de direitos um com o outro". Deste modo, cria-se
uma consanguinidade real, embora não material. Os parceiros tornam-se de algum modo
"irmãos com a mesma carne e os mesmos ossos". A aliança realiza um todo que significa
paz (cf. ThWNT, II, 105-137). Será possível agora fazermos pelo menos uma ideia do
que sucedeu na hora da Última Ceia e que, desde então, se renova sempre que celebramos
a Eucaristia? Deus, o Deus vivo estabelece conosco uma comunhão de paz; mais, Ele
cria uma "consanguinidade" entre Ele e nós. Através da encarnação de Jesus, através
do seu sangue derramado, fomos atraídos para dentro duma consanguinidade muito real
com Jesus e, consequentemente, com o próprio Deus. O sangue de Jesus é o seu amor,
no qual a vida divina e a humana se tornaram uma só. Peçamos ao Senhor para compreendermos
cada vez mais a grandeza deste mistério, a fim de que o mesmo desenvolva de tal modo
a sua força transformadora no nosso íntimo que nos tornemos verdadeiramente consanguíneos
de Jesus, permeados pela sua paz e desta maneira também em comunhão uns com os outros.
Agora,
porém, surge ainda uma nova questão. No Cenáculo, Cristo dá aos seus discípulos o
seu Corpo e o seu Sangue, isto é, dá-Se a Si mesmo na totalidade da sua pessoa. Mas,
como pode fazê-lo? Está ainda fisicamente presente no meio deles, está ali diante
deles! Eis a resposta: naquela hora, Jesus realiza aquilo que tinha anteriormente
anunciado no discurso do Bom Pastor: "Ninguém me tira a vida, sou Eu que a dou espontaneamente.
Tenho o poder de dá-la e o de retomá-la…" (Jo 10, 18). Ninguém Lhe pode tirar a vida:
é Ele que por livre decisão a dá. Naquela hora, antecipa a crucifixão e a ressurreição.
O que se há de realizar por assim dizer fisicamente n’Ele, cumpre-o Ele já de antemão
na liberdade do seu amor. Ele dá a sua vida e retoma-a na ressurreição, a fim de poder
partilhá-la para sempre.
Senhor, hoje destes-nos a vossa vida, destes-nos a
Vós mesmo. Penetrai-nos com o vosso amor. Fazei-nos viver no vosso "hoje". Tornai-nos
instrumentos da vossa paz. Amém