POSICIONAMENTO DE DOM FISICHELLA SOBRE O CASO DE ALAGOINHA
Cidade do Vaticano, 15 mar (RV) – O presidente da Pontifícia Academia para
a Vida, Dom Rino Fisichella, comentou no jornal da Santa Sé, L’Osservatore Romano,
o caso da menina brasileira de nove anos que interrompeu a gravidez de dois gêmeos
concebidos após ser violentada pelo seu padrasto em Alagoinha (PE).
A seguir
o texto do arcebispo Dom Rino Fisichella com a tradução livre de Mariângela Jaguraba.
"O
debate sobre algumas questões freqüentemente se torna cerrado e as diferentes perspectivas
nem sempre permitem considerar o quanto oacontecimento em jogo seja realmente
grande. É este o momento em que se deve olhar o essencial e, por um momento, deixar
de lado aquilo que não toca diretamente o problema. O caso em sua dramaticidade é
simples. Uma menina de apenas nove anos, a quem chamaremos Carmen, e a quem devemos
olhar fixamente nos olhos sem distrair sequer um minuto, para fazê-la entender o quanto
a queremos bem. Carmen, em Alagoinha, foi violentada várias vezes pelo seu jovem padrasto,
engravidou de dois gêmeos e nunca mais teve uma vida tranqüila. A ferida é profunda
porque a violência a destruiu por dentro e dificilmente lhe permitirá no futuro olhar
os outros com amor. Carmen representa uma história de violência cotidiana e ganhou
as páginas dos jornais somente porque o arcebispo de Olinda e Recife se apressou em
excomungar os médicos que a ajudaram a interromper a gravidez. Uma história de violência
que, infelizmente, teria passado despercebida, pois estamos acostumados a ver todos
os dias fatos de uma gravidade sem igual, se não fossem as reações causadas pela atuação
do bispo. A violência sobre uma mulher é grave, e se torna ainda mais deplorável quando
perpetrada contra uma menina pobre, que vive em condição de degradação social. Não
existe linguagem correspondente para condenar tais episódios, e os sentimentos que
surgem são muitas vezes uma mistura de raiva e de rancor que se acalmam somente quando
a justiça é feita realmente e se tem certeza de que o criminoso será punido. Carmen
deveria ter sido em primeiro lugar defendida, abraçada, acariciada com doçura para
fazê-la sentir que estamos todos com ela; todos, sem exceção. Antes de pensar na excomunhão
era necessário e urgente salvaguardar sua vida inocente e recolocá-la num nível de
humanidade da qual nós homens de Igreja devemos ser anunciadores e mestres. Assim
não foi feito e, infelizmente, a credibilidade de nosso ensinamento sofre com isso,
pois aparece aos olhos de muitos como insensível, incompreensível e sem misericórdia.
É verdade, Carmen trazia consigo outras vidas inocentes como a sua, não obstante fossem
frutos da violência, e foram ceifadas; isso, todavia, não basta para fazer um julgamento
que pesa como uma guilhotina. No caso de Carmen se confrontaram a vida e a morte.
Por causa de sua tenra idade e de suas condições de saúde precárias sua vida corria
sério risco por causa da gravidez. Como agir nestes casos? Decisão árdua para o médico
e para a lei moral. Escolha como esta, mesmo como uma casuística diferente, se repetem
cotidianamente nas salas de tratamento intensivo e o médico se encontra só no ato
de decidir o que fazer. Ninguém chega a uma decisão desse tipo com desenvoltura; é
injusto e ofensivo pensá-lo. O respeito devido ao profissionalismo do médico é
uma regra que deve envolver todos e não pode consentir chegar a um julgamento negativo
sem antes considerar o conflito criado em seu íntimo. O médico traz consigo sua história
e sua experiência; uma escolha como essa de ter que salvar uma vida, sabendo que coloca
em sério risco outra, jamais é vivida com facilidade. Certo, alguns se acostumam a
tais situações que e as vivem sem sentimento; nestes casos, porém, a vocação de ser
médico é reduzida apenas a uma profissão vivida sem entusiasmo e passivamente. Fazer
de um caso um todo, além de incorreto seria injusto. Carmen repropôs um caso moral
entre os mais delicados; tratá-lo de forma rápida não faria justiça nem à sua frágil
pessoa nem aos que estão envolvidos no caso. Como todo caso singular e concreto, merece
ser analisado de forma peculiar, sem generalizações. A moral católica possui princípios
dos quais não pode prescindir, mesmo se o quisesse. A defesa de uma vida humana desde
a sua concepção pertence a um destes princípios e se justifica pela sacralidade da
existência. Todo ser humano, de fato, desde o primeiro instante de vida traz consigo
a imagem do Criador, e por isto estamos convictos de que devem ser reconhecidos os
direitos e a dignidade de toda pessoa, primeiro entre todos o de sua intangibilidade
e inviolabilidade. O aborto não espontâneo sempre foi condenado pela lei moral como
um ato intrinsecamente mau e este ensinamento permanece imutável em nossos dias desde
os primórdios da Igreja. O Concílio Vaticano II na Gaudium es spes -documento
de grande abertura e perspicácia em relação ao mundo contemporâneo - usa de forma
inesperada palavras inequívocas e duríssimas contra o aborto direto. A colaboração
formal constitui uma culpa grave que, quando realizada, exclui automaticamente da
comunidade cristã. Tecnicamente, o código de Direito Canônico usa a expressão latae
sententiae para indicar que a excomunhão se atua automaticamente no momento em
que o fato acontece. Não era preciso tanta urgência e publicidade ao declarar
um fato que se realiza de maneira automática. O que se sente maior necessidade neste
momento é o sinal de um testemunho de proximidade a quem sofre, um ato de misericórdia
que, mesmo mantendo firme o princípio, é capaz de olhar além da esfera jurídica para
atingir aquilo que o direito prevê como objetivo de sua existência: o bem e a salvação
daqueles que crêem no amor do Pai e daqueles que acolhem o Evangelho de Cristo como
as crianças, que Jesus chamava para junto de si e as abraçava dizendo que o reino
dos céus pertence a quem é como elas. Carmen, estamos do seu lado. Partilhamos
o sofrimento pelo qual passou, queremos fazer de tudo para lhe restituir a dignidade
que lhe foi tirada e o amor de que você precisa ainda mais. São outros que merecem
a excomunhão e o nosso perdão, não os que lhe permitiram viver e ajudam a recuperar
a esperança e a confiança, não obstante a presença do mal e a maldade de muitos".