O levantamento das excomunhões não são ainda o fim do cisma de Lefebvre
(27/1/2009) Domingo à tarde, encerrando a Semana de Oração pela Unidade, com as Vésperas
da Conversão de São Paulo, na respectiva basílica, Bento XVI observava que a oração
pela unidade e pela paz precisa de ser “comprovada com gestos corajosos de reconciliação
entre nós cristãos”. E lembrava que “a diversidade de ritos e tradições” não se deve
contrapor “ao respeito recíproco e à caridade fraterna”. Em vez de serem um obstáculo
– sublinhou – “as legítimas diversidades” hão-de ser vistas como “riqueza na multiplicidade
de expressões da fé comum”. Sem fazer obviamente qualquer referência directa
ao levantamento da excomunhão aos quatro bispos ordenados por Mons. Lefebvre em 1988,
é de supor que esta sua decisão estivesse bem presente ao seu espírito, assim como
aquela que tomou há dois anos, com o Motu proprio que atribuiu plena validade, na
Igreja Católica, ao uso do missal de 1962, como forma extraordinária do único rito
romano. Duas medidas ligadas entre si, assumidas pessoalmente pelo Papa Ratzinger
não obstante as vozes que dentro da Igreja, dissentiam da conveniência de tais decisões.
Quando em Agosto de 2005, poucos meses depois da sua eleição, recebeu em Castelgandolfo
um destes bispos, o suíço Bernard Fellay, superior geral da “Fraternidade São Pio
X”, Bento XVI exprimira o desejo de que se avançasse gradualmente, “num tempo razoável”,
com os passos necessários à reaproximação das comunidades lefebvrianas, em direcção
à plena comunhão. Como se lê no Decreto da Congregação dos Bispos, “este dom de paz”,
da parte do Papa, é “um sinal para promover a unidade na caridade da Igreja universal”.
Como recordou o cardeal Jean-Pierre Ricard, arcebispo de Bordéus, membro
da comissão pontifícia “Ecclesia Dei” que vem pilotando este processo, o gesto agora
realizado pelo Papa não é o ponto de chegada, mas sim “o início de um processo de
diálogo”, longo, “caminho a percorrer conjuntamente”. Joseph Ratzinger, que como cardeal
integrava a referida comissão criado por João Paulo II, conhece bem os escolhos passados
e presentes neste acidentado caminho. “Misericórdia e expectativa” é o título da nota
com que, domingo, “L’Osservatore Romano” enquadrava o Decreto de levantamento das
excomunhões. Mais claro ainda, no dia seguinte, o editorial do quotidiano da
Santa Sé: “o revocar da excomunhão não é ainda a plena comunhão”, não põe ponto final
no “doloroso caso” do “cisma lefebvriano”. Questão decisiva, em aberto, é a completa
adesão ao Vaticano II. Esclarece o vice-director do “L’Osservatore Romano”: com este
gesto de boa vontade, o Papa mais não fez do que “desobstruir o campo de possíveis
pretextos” de polémica, colocando os dissidentes perante “o verdadeiro problema: a
plena aceitação do magistério, incluindo obviamente o Concílio Vaticano II”, parte
integrante da Tradição da Igreja tão reclamada pelos discípulos de Mons. Lefebvre.
Evocando os 50 anos, a 25 de Janeiro, em São Paulo fora de Muros, da revelação de
que iria ser convocado um Concílio Ecuménico, escreve Carlo Di Cicco: “Com o anúncio
do Papa João, é claro que não desaparece a tradição, que continua ainda hoje nas formas
próprias de uma pastoral e de um magistério actualizados (“aggiornati”) por este grande
Concílio”.
Causam perplexidade e preocupação, mesmo nos mais optimistas, as
declarações do bispo Bernard Fellay no comunicado em que se congratula com a decisão
papal. O superior geral da “Fraternidade São Pio X” revela que na sua carta de 15
de Dezembro ao cardeal Dario Castrillon Hojos, deixou em claro a posição dos discípulos
de Mons. Lefebvre: “Estamos prontos a escrever o credo com o nosso sangue, a subscrever
o juramento anti-modernista, a profissão de fé de Pio IV, aceitamos e fazemos nossos
todos os Concílios até ao Vaticano II, relativamente ao qual exprimimos algumas reservas”.
E chega ao ponto de declarar: “permanecemos fiéis à linha de conduta traçada pelo
nosso fundador, Mons. Marcel Lefebvre, do qual esperamos a rápida reabilitação”. Evidentemente
que estas passagens não são referidas no Decreto da Congregação dos Bispos que anuncia
o levantar das excomunhões. Desta carta ao cardeal Castrillón Hoyos, ali são citadas
outras afirmações mais conciliadoras, mas não isentas de alguma ambiguidade: “Continuamos
firmemente determinados na vontade de permanecer católicos e de colocar todas as nossas
forças ao serviço da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Igreja Católica
Romana. Aceitamos os seus ensinamentos com espírito filial. Acreditamos firmemente
no Primado de Pedro e nas suas prerrogativas e por isso muito nos faz sofrer a situação
actual”.
Mas voltemos ainda ao clarificador editorial do último número de
“L’Osservatore Romano”. Escreve Carlo Di Cicco:
“A revogação das excomunhões
aos bispos ordenados em 1988 tornou-se em mais um caso mediático cheio de tons emotivos.
Não faltou quem se precipitasse a atribuir apressadamente a Bento XVI não só a culpa
de ter cedido a posições anti-conciliares, mas até mesmo, se não a conivência, pelo
menos a imprudência perante teses negacionistas da Shoah (“Holocausto” dos judeus).
As palavras do Papa nas Vésperas conclusivas da Semana de Oração pela Unidades dos
Cristãos e a sua reflexão na oração do Angelus foram um desmentido a estes receios
difusos. Bento XVI disse palavras importantes garantindo que ‘os mais velhos entre
nós não esquecem certamente” o primeiro anúncio do Concílio feito por João XXIII ‘
a 25 de Janeiro, faz agora precisamente 50 anos”. Um gesto que hoje Papa Ratzinger
define como ‘providencial decisão’ sugerida pelo Espírito Santo… É à luz desta
convicção de que o Concílio foi um acontecimento inspirado pelo Alto que se deve ler
o gesto de revogação das excomunhões. A reforma do Concílio ainda não está completamente
aplicada, mas encontra-se já tão consolidada na Igreja Católica que não pode ser posta
em dúvida por um magnânimo gesto de misericórdia. Inspirado aliás pelo novo estilo
de Igreja preconizado pelo Concílio, que em vez da condenação prefere o remédio da
misericórdia… O diálogo é parte constitutiva da Igreja conciliar e Bento XVI
tem repetido diversas vezes, e de novo o fez agora, que o ecumenismo requer a conversão
de todos – mesmo da Igreja Católica – a Cristo… O percurso de reconciliação com
os tradicionalistas é uma opção colegial e já bem conhecida da Igreja de Roma e não
um gesto repentino e improvisado de Bento XVI. Da aceitação do Concílio deriva necessariamente
um posição límpida na questão do negacionismo. A Declaração Nostra Aetate que assinala
a mais autorizada mudança de posição católica em relação ao hebraísmo, deplora ‘os
ódios, as perseguições e todas as manifestações de anti-semitismo, dirigidas contra
os judeus em qualquer época e da parte de quem quer que seja’. Trata-se de um ensinamento
indiscutível para um católico. Os últimos Papas, incluindo Bento XVI, têm explicitado
este ensinamento. Em dezenas de documentos, gestos e discursos. As recentes declarações
negacionistas (de um dos quatro bispos lefebvrianos) – conclui o editorial de “L’Osservatore
Romano” – contradizem este ensinamento e são portanto gravíssimas e inadmissíveis.
Prestadas antes do documento de revogação da excomunhão, permanecem inaceitáveis”.