2009-01-01 16:32:03

D. José Policarpo: Combate à pobreza está a tornar-se «direito fundamental»
 


(1/1/2009) Nesta quadra litúrgica em que celebramos a encarnação da Palavra eterna de Deus, isto é, aquele momento em que a Palavra de Deus, em Jesus Cristo, se exprimiu na nossa realidade humana, procura penetrar nela em todos os tempos e circunstâncias, e imprime na humanidade a força para a superação de limites e conflitos, em ordem à harmonia definitiva; num momento, em que a Igreja celebrou um Sínodo sobre o papel da “Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja”; na Solenidade da maternidade de Maria, que os povos sempre aclamaram como Rainha da Paz, porque escutou e se fez serva da Palavra; neste Dia Mundial da Paz, quero meditar convosco a relação que há entre a Palavra de Deus e a visão cristã da paz, na linha da oração do salmista para quem, pela sua Palavra, Deus promete a paz ao Seu Povo e a todos os que voltam para Ele o seu coração (cf. Ps. 85,9).
2. A Palavra de Deus ajuda-nos a definir a Paz, que significa a plenitude da felicidade. Constrói-se, vencendo e eliminando tudo o que no homem é desarmonia, incapacidade, opressão, divisão interior, dificuldade de viver com os outros, em comunidade, em harmonia e amor. Trata-se de reconstruir e edificar o homem e a criação na justiça original, em que será restabelecida a autenticidade de todas as coisas, na sua verdade de criaturas de Deus.
O ideal cristão da paz supõe a redenção, supõe a reconstrução interior do homem e da comunidade humana, em ordem à harmonia definitiva. E isso é obra de Deus em nós, sobretudo acção do Espírito de Cristo, morto e ressuscitado. Que a harmonia da paz é obra de Deus em nós, é certeza que atravessa toda a Sagrada Escritura. Nesta celebração, líamos o Livro dos Números: “O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz”. Esta é uma bênção de Deus.
Jesus Cristo apresenta-Se e é acreditado na Igreja Apostólica, como o construtor definitivo da paz. Nos Seus milagres, àqueles que cura, que liberta de um mal, físico ou espiritual que lhes impedia a felicidade, Jesus diz invariavelmente: “Vai em paz”. O Seu nascimento foi o anúncio da paz (cf. Lc. 2,14), e o ideal da construção da paz faz parte do Evangelho do Reino: “bem-aventurados os artífices da paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt. 5,9).
Em São Paulo, o papel decisivo de Cristo, morto e ressuscitado, na construção da paz, leva-o a identificar ou, pelo menos, a fazer coincidir os conceitos de paz e de redenção. Só redimido o homem pode construir e alcançar a paz. Cristo é a nossa força. “Reconciliou todos os seres para Ele, tanto na terra como nos Céus, fazendo a paz pelo sangue da Sua Cruz” (Col. 1,20). No horizonte da sociedade daquele tempo, Cristo reconciliou judeus e gentios, fazendo de todos um só corpo (cf. Efs. 2,14-22). Esta construção da paz que coincide com a acção da graça redentora, supõe a transformação interior do homem. Como aos miraculados a quem Jesus reconstituía a harmonia do corpo e do espírito e os despedia enviando-os “em paz”, assim a Igreja envia a comunidade que celebrou a Eucaristia, onde se realiza a redenção, dizendo-lhe “ide em paz”. Aos cristãos, ao serem enviados para um mundo onde a paz ainda não triunfou, envia-os como obreiros da paz, construtores da paz.
Na Palavra de Deus, tanto do Antigo como do Novo Testamento, a construção da paz é luta neste mundo, mas a sua perfeição será escatológica. Será a harmonia definitiva dos “novos céus e da nova terra”. O Concílio Vaticano II resumiu bem esta tensão escatológica da construção da paz ao afirmar: “A paz nunca é uma realidade completamente conseguida, é algo a construir sem cessar” (G.S., 78), o que exige a vitória contínua sobre o pecado.
O ideal de paz a que a Palavra de Deus nos convida é um projecto grandioso, supõe um ideal e um modelo de humanidade, é uma luta a travar neste mundo, em cada tempo e em cada circunstância, com um horizonte de eternidade. Só é possível construir a paz prosseguindo esse ideal, que inspira o universo ético da construção do homem e da sociedade.
3. Este horizonte da construção da paz traçado pela Palavra de Deus, apresenta-nos interpelações concretas para os caminhos da paz na sociedade contemporânea. A primeira é que a construção da paz começa no coração do homem. A luta social pela paz tem de corresponder a um esforço pessoal para conseguir a harmonia interior. Esses são os “justos”, os obreiros da paz, que imprimem na sociedade o seu ideal interior de paz, de conversão e de busca da vida. Todos os atentados à paz, na violência, nas injustiças, nos egoísmos, são provocados por pessoas que não têm um ideal pessoal de luta pela paz interior. Uma sociedade que não cultive ou abandone um ideal de humanidade, que relativize a educação para os valores, que dê a mesma importância à verdade e à mentira, à generosidade e à ganância, que, numa compreensão imperfeita da liberdade e da tolerância, acaba por aceitar o mal, nunca construirá a paz. Pode tentar evitar as guerras e lutar contra as expressões de violência, mas não edificará a paz.
Nós, os cristãos, ao escutar a Palavra de Deus, sabemos que esta luta pessoal pela paz passa pela conversão, pela vitória em nós sobre o pecado e as raízes do mal. Nas suas propostas finais, o último Sínodo afirmou: “A Palavra de Deus é palavra de reconciliação, porque nela, Deus reconcilia consigo todas as coisas (cf. 2Co. 5,18-20). (…) A força sanante da Palavra de Deus é um apelo vivo a uma constante conversão pessoal naquele que a escuta e um incentivo a um anúncio corajoso da reconciliação oferecida pelo Pai em Cristo” (cf. 2Co. 5,20-21).
Outra interpelação da Palavra de Deus é que a paz tem necessariamente uma dimensão comunitária, porque nenhum homem constrói isoladamente a sua paz, mas no diálogo e na corresponsabilidade por todos os outros, na comunidade. A comunidade é o palco e o cenário da construção da paz. Esta é um fruto do amor. O Concílio, no texto já citado, afirma: “A paz é também fruto do amor que vai muito além daquilo que a justiça nos pode trazer. A paz terrestre que nasce do amor do próximo é, ela mesma, imagem e efeito da paz de Cristo que vem de Deus Pai” (G.S., 78).
A reconciliação entre os homens, anunciada pela Palavra e exigência primeira da comunidade, é o primeiro rosto da paz. Volto a citar o texto do último Sínodo: “Nestes dias de conflitos de todo o género e de tensões inter-religiosas, por fidelidade à obra de reconciliação realizada por Deus em Jesus, os católicos devem empenhar-se em dar o exemplo de reconciliação, procurando partilhar os mesmos valores humanos, éticos e religiosos na sua relação com Deus e com os outros. Procurem assim construir uma sociedade justa e pacífica”.
4. Um outro aspecto da dimensão comunitária da paz é a luta contra a pobreza. Integrar a pobreza, sobretudo a miséria, no dinamismo de construção interior e pessoal da paz, não é fácil, embora seja possível. É o sentido do Evangelho anunciado aos pobres.
Mas é preciso estar consciente de que a dimensão colectiva da pobreza está na origem de conflitos e violências. No momento que a humanidade hoje atravessa, a dimensão global da pobreza assume contornos preocupantes, a exigir mudanças políticas, lúcidas e corajosas. A globalização pôs a claro a corresponsabilidade global da humanidade, tanto nos problemas como na busca de soluções. Os egoísmos dos Estados, dos grupos, e das pessoas, são cada vez menos toleráveis. Os sistemas económicos têm de ser dinamismos, não só de produção de riqueza para alguns, mas de irradicação da pobreza. No aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, começa a fazer caminho a convicção de que a erradicação da pobreza é um direito fundamental. O Santo Padre Bento XVI dedicou a sua Mensagem para este Dia Mundial da Paz a este tema: “Combater a pobreza, construir a Paz”.
5. Não desanimemos nesta luta pela construção da paz. Que o facto de sabermos que não seremos capazes de, nesta geração, construir a paz perfeita, não nos leve a fraquejar nessa luta. Foi para isso que Jesus nos deu a força do Seu Espírito. O combate pela paz é dinamismo espiritual e tem um horizonte de eternidade. Aos discípulos, desanimados com o anúncio da partida do Senhor, Ele diz: “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha Paz; não vo-la dou como o mundo a dá. Que o vosso coração cesse de se perturbar e de temer. Ouvistes o que vos disse: Eu vou, mas voltarei para junto de vós” (Jo. 14,27-28). É a Palavra de Jesus que nos traça o horizonte definitivo da luta pela paz. Com Ele, com a força do Seu Espírito, sem medo, porque este combate é a busca da santidade.
Lisboa, Paróquia de Cristo-Rei da Portela, 1 de Janeiro de 2009
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca








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