2008-12-26 11:23:05

Homilia do Bispo do Porto no Dia de Natal : Para que o Natal de Cristo alcance o mundo inteiro


(26/12/2008) Celebramos o Natal de Jesus, celebramos a salvação que acontece. Disto mesmo se trata e menos não podia ser, tratando-se de religião, isto é, verdade completa entre Deus e o homem.
Ouvíamos na Epístola aos Hebreus, qual consciência declarada das primeiras gerações cristãs: “Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo”.
Dias últimos, profecias realizadas, criação retomada e concluída. Isto mesmo celebramos, nisto também nos projectamos para um futuro que não poderá ser senão acabamento do que nos foi dado em Cristo. Em Cristo para o mundo, precisamente. Realizando a profecia também escutada: “Todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus”.
É de dia que conseguimos ver, ou então nalguma luz que faça da noite dia. Pois bem, amados irmãos e irmãs, essa luz sabemos bem qual seja. Reconhecemo-la no Evangelho de há pouco: “O Verbo era a luz verdadeira, que vindo ao mundo, ilumina todo o homem”.
Ilumina então a nossa humanidade, de todos e de cada um. Verdade insofismável que finalmente nos esclarece. De facto, a inteligência de tantos pensadores e filósofos, avançara já na sondagem difícil do que somos e podemos. Fisicamente alguma coisa, psicologicamente também. – Que tesouros de sabedoria herdámos nós, de gregos e asiáticos de então! – Como são interessantes e importantes as achegas da antropologia antiga, como da contemporânea, manifestando em cada cultura, mais ou menos evoluída, outras tantas aberturas e possibilidades da alma e da convivência humanas!
E, no entanto, quando se ultimavam os tempos, para retomar a alusão bíblica, quantas perplexidades subsistiam, quantas interrogações demoravam, quantas contradições entre teoria e prática, propósitos e realidades… Na própria verdade essencial sobre a vida humana, quantas violações da sua dignidade, nos aspectos pessoais e políticos, da escravatura generalizada, por nascença ou cativeiro, aos morticínios, por guerra ou sentença, às perversões morais de todo o tipo.
Em torno do Mediterrâneo, juntavam-se há dois milénios, e dum modo estável como nunca acontecera, as tradições culturais da Ásia, da África e da Europa: mesa comum a que a América e a Oceânia se juntariam muito depois. Podemos dizer que a humanidade se encontrava pela primeira vez, para que Deus se pudesse encontrar com ela, dizendo-lhe a última palavra, esclarecendo-lhe o sentido da criação. E assim aconteceu, como o celebramos hoje.
Mas tudo em Deus nos surpreende, pois que não é nosso senão por graça. E assim não foi no Capitólio de Roma, no areópago de Atenas, no anfiteatro de Éfeso ou na biblioteca de Alexandria que Deus se disse no seu Verbo incarnado. Lá chegaria depois o eco, como ainda mais longe e mais profundamente há-de ressoar hoje em dia. Também não foi a senadores ou filósofos, nem a diletantes ou letrados, que a comunicação se dirigiu primeiramente; embora a todos se oferecesse, como oferece agora, qual substância ímpar para a reflexão humana.
Na verdade, continuando com o trecho evangélico, “o Verbo estava no mundo e o mundo que foi feito por Ele, não O conheceu”. Nasceu onde não se esperava, apesar duma profecia antiga; cresceu e viveu como só depois se captou à luz de outras; menino e dependente, num presépio humílimo; criança fugitiva e salva por pouco; emigrante e retornado, ao sabor das circunstâncias; trabalhador comum na oficina de Nazaré; sinal de contradição no que disse e fez; privilegiou os últimos, de que fez primeiros; fez da morte vida, porque inteira oferta; e da caridade lei, pois só ela salva…
Dramático e trágico foi o não reconhecimento da parte de quem O esperava: “o mundo que foi feito por Ele não O conheceu”. E não falamos do passado, porque a humanidade é hoje idêntica, tão expectante como desatenta. Basta contar algumas décadas de vida, para já se ter ganho e perdido sucessivas ilusões de mudança social: ainda se cantavam amanhãs nos anos sessenta, que não despontaram assim vinte anos depois; euforias houve de sucesso fácil nos anos que se seguiram, que deixam agora difíceis sequelas de economia e subsistência; a nível mundial, desigualdades que pareciam ultrapassáveis pela solidariedade internacional, agravaram-se ainda para populações inteiras…
- E não há em tudo isto e fundamentalmente a mesma desatenção de há dois mil anos, quando “o mundo que foi feito por Ele não O conheceu”? - Quando nos recusamos a partir daí mesmo onde Ele nos retomou, ou seja da humanidade indesmentível de cada criança ou adulto, em todo o arco da existência humana, que em Cristo nasce, cresce, morre e ressuscita, como destino eterno e dignidade absoluta?!
Onde Cristo nasceu, preenchendo a humanidade de filiação divina, respondia Deus à mais profunda e essencial das nossas expectativas. Mas onde Cristo nasceu, amados irmãos e irmãs, pouquíssimos deram por Ele, como nas três décadas seguintes. Onde Deus se fez homem - o Filho de Deus é o Filho de Maria – não era preciso mais do que essa mesma verdade, por si só manifestada e garantida. Conheceram-na apenas os corações coincidentes, resumidos em expectativa e entrega: Maria que O incarnou, José que O guardou, os pastores que não cabiam em si de espanto, os magos que não pararam até O encontrar. E no céu cantavam anjos, aqueles que continuam a cantar a glória de Deus e a paz na terra. Anjos só escutados por quem “tem ouvidos para ouvir” e nesse mesmo canto encontra ânimo, para anunciar também.
Sim, amados irmãos e irmãs, porque tudo continua como foi dito na última palavra divina. Aos poucos que se juntaram no Presépio, reconhecendo e anunciando toda a lição dele, juntam-se, apesar de tudo, as gerações seguidas dos que perceberam e percebem o Natal de Cristo, como já o certificava o evangelista: “Àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”.
Notável coisa é esta, e o melhor que temos hoje para celebrar e oferecer. Com a incarnação do Verbo, a nossa humanidade culmina na possibilidade oferecida da filiação divina! Era então isto que esperávamos, desde que nos tornámos criação consciente. É isto mesmo que espera a criação inteira, como o soube São Paulo num rasgo admirável da sua escrita: “Pois até a criação se encontra em expectativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus” (Rm 8, 19).
Isto recebemos do Verbo incarnado, isto oferecemos ao mundo que espera, ou quase desespera. Neste final de ano não são muito optimistas as análises do que foi e os prognósticos do que venha a ser. Da família à educação, da economia à política, do nacional ao internacional, aparecem mais as sombras do que as luzes. Não é preciso forçar a comparação nem arriscar o anacronismo, para dizer que há dois mil anos, naquela província remota do grande Império em que Cristo nasceu, as expectativas também não eram grandes para a maioria da população.
O Menino cresceu e compartilhou dificuldades comuns a todos os habitantes dum território ocupado por uma grande potência que o não entendia. Pessoalmente, afirmou-se a si mesmo e às suas ideias, entre alguns apoios e muitas oposições: queria todo o céu para a terra e toda a terra para o céu, num mundo de irmãos e de filhos de Deus, a que chamava “Reino”. Em tudo foi consequente, sem excluir ninguém, mesmo os opositores, pelos quais também morreria. Venceu o mal com o bem e a morte com a vida: a vida desde o princípio, pois as tábuas do Presépio foram as da Cruz, como já o disse a piedade cristã.
E, mais ainda, a sua vitória sobre a morte torna-O presente na humanidade de cada um, universalmente reconhecível no Natal que a Páscoa garante em cada dia. Em cada acto de proximidade, a nossa vida torna-se tempo completo, luz intensa, religião cumprida. E aqui nos fixamos, para não adiarmos, em “tempo de crise” a salvação e o sentido. Não desistamos nem nos iludamos mais: temos Presépio que chegue, em cada casa onde se nasça ou pereça; temos Céu bastante em cada terra onde estejamos; temos Cristo inteiro em cada irmão abeirado.
Farão os políticos e os economistas, como é seu dever, o melhor que puderem para garantir o bem comum num tempo melindroso e difícil. Peçamos por eles, para que a Luz do Natal também os inspire. Peçamos por todos os que sofrem mais directamente as dificuldades actuais, nos vários aspectos da sociedade e da economia. Peçamos por nós, para que o anúncio angélico que levou os pastores a Belém nos leve agora com a mesma urgência ao encontro de quem precisa, aí mesmo, onde o Presépio continua.
Estava fria a noite na Belém da altura… Mas já Deus se dizia no Menino, já a Luz brilhava nos olhos, já os anjos anunciavam a Paz. Irmãos e irmãs: por esta celebração lá estamos também, para que os nossos corações se preencham com o mesmo Verbo, a mesma Luz e a mesma Paz, para que o Natal de Cristo alcance o mundo inteiro. Como diremos de seguida, comprometidos no seu próprio sentimento, “por nós homens, e para nossa salvação [é que Ele] desceu dos Céus. E encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e Se fez homem”.
+ Manuel Clemente, Bispo do Porto








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