Natal na poesia portuguesa : Um olhar sobre oito séculos de literatura pela pena de
José Tolentino Mendonça
(23/12/2008) Há mais de oito séculos que o Natal se celebra na poesia portuguesa.
As belíssimas composições de Afonso X, do Mestre André Dias e do maior teólogo da
nossa literatura que é Gil Vicente (bastaria, para qualquer natal futuro, o seu «Breve
sumário da História de Deus»: «Adorai, montanhas, o Deus das alturas, também
das verduras. Adorai, desertos e serras floridas, o Deus dos secretos, o
Senhor das vidas. Ribeiras crescidas, louvai nas alturas o Deus das criaturas…»)
Representam uma espécie de pórtico para uma viagem que, em cada época, encontrou
os seus cantores. No século XVI, há um trecho anónimo, talvez cantado numas dessas
romarias como ainda hoje se vêem «Non tendes cama bom Jesus não non tendes
cama senão no chão», Mas também sonetos de Camões «Dos Céus à Terra desce a mor
Beleza» e de Frei Agostinho da Cruz. Ao século XVII bastariam os vilancicos de
Sóror Violante do Céu «Todos dizem, meu Menino, Que vindes libertar almas,
Mas eu digo, vida minha, Que vindes a cativá-las Porque é tal a formosura…»,
Como ao século XVIII, do Abade de Jazente, de Correia Garção e outros, bastaria
a composição piedosa do satírico Bocage, cotejando com elegância o texto profético
de Isaías «A Virgem será mãe; vós dareis flores, Brenhas intonsas, em remotos
dias; Porás fim, torva guerra, a teus horrores». O século XIX é de Garrett,
com um poema delirante e “incorrecto”, onde faz valer o natal folgado e guloso da
sua «católica Lisboa» sobre o «natal sem graça» dos protestantes londrinos. Mas, a
seu lado, Feliciano de Castilho, canta «O Natal do pobrezinho» e João de Lemos e João
de Deus descrevem sobretudo a experiência mística da contemplação. O século XX desdobra,
seculariza, interroga, e, por fim, talvez adense o escondido significado do Mistério
da Encarnação de Deus. Há o Natal devoto de Gomes Leal; há o Natal distanciado de
Pessoa (o seu grande poema de natal é evidentemente o Poema VIII de O Guardador de
rebanhos, mas isso dava outra conversa); o Natal dilacerado pela procura de Deus em
José Régio «Distância Transcendente, Chega-te, uma vez mais, Tão perto
que te aqueças, como a gente, No bafo dos obscuros animais» E em Torga; o
evangélico Natal de Sophia e de Nemésio (como esquecer aquele «Natal chique», onde
«Só [um] pobre me pareceu Cristo»?); o Natal asperamente profético de Jorge de Sena
(«Natal de quê? De quem?/ Daqueles que o não têm?») ou de David Mourão Ferreira «Vai
nascer esta noite à meia-noite em ponto num sótão num porão numa cave inundada».
Declinações diferentes de um único Natal. José Tolentino Mendonça, Director
do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura (www.snpcultura.org) (
Em Ecclesia )