Carta para o Dia Mundial de Oração pela Santificação dos Sacerdotes
(30/5/2008) Reverendos e queridos irmãos no Sacerdócio Na Festa do Santíssimo
Coração de Jesus, fixamos, com incessante ternura, o olhar da nossa mente e do nosso
coração em Cristo, único Salvador das nossas existências e do Mundo. Pôr-se em relação
com Cristo significa pôr-se em relação com aquele Rosto que cada homem, conscientemente
ou não, procura como única resposta adequada à própria insuprimível sede de felicidade.
Este Rosto, nós encontrámo-l’O e, naquele dia, naquele momento, o Seu Amor feriu
de tal modo o nosso coração, que não pudemos deixar de pedir incessantemente para
estar na Sua Presença. “Pela manhã, Senhor, ouvis a minha voz, mal nasce o dia exponho
o meu pedido e aguardo ansiosamente” (Salmo 5). A Sagrada Liturgia conduz-nos
de novo e ainda a contemplar o Mistério da Encarnação do Verbo, origem e realidade
íntima desta companhia que é a Igreja: o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob revela-Se
em Jesus Cristo. “Ninguém teria podido ver a Sua Glória, se primeiro não tivesse sido
curado da humildade da carne. Foste cegado pelo pó, e com o pó foste curado: a carne
tinha-te cegado, a carne cura-te” (Santo Agostinho, Comentário ao Evangelho de João,
Homilia 2, 16). Só olhando de novo para a perfeita e fascinante humanidade de
Jesus Cristo, Vivo e actuante agora, que a nós Se revelou e que agora se inclina ainda
sobre cada um de nós com aquele amor de total predilecção que lhe é próprio, é possível
deixar que Ele ilumine e preencha o abismo de necessidade que é a nossa humanidade,
na certeza da Esperança encontrada, na certeza da Misericórdia que abraça os nossos
limites, ensinando-nos a perdoar tudo o que de nós próprios não nos conseguíamos sequer
aperceber. “O abismo chama outro abismo no fragor das vossas cataratas” (Salmo 41).
Gostaria, por ocasião do habitual Dia de Oração pela Santificação dos Sacerdotes,
que se celebra na Festa do Santíssimo Coração de Jesus, recordar a prioridade da oração
em relação à acção, porque dela depende a incisividade da acção. Da relação pessoal
de cada um com o Senhor Jesus depende em grande medida a missão da Igreja. Portanto,
a missão deve ser alimentada pela oração: “Chegou o momento de reafirmar a importância
da oração perante o activismo e a secularização dominante” (Bento XVI, Deus caritas
est, 37). Não nos cansemos de haurir da Sua Misericórdia, de O deixar ver e curar
as nossas chagas dolorosas do nosso pecado para ficarmos estupefactos diante do milagre,
sempre novo, da nossa humanidade redimida. Caríssimos irmãos, sejamos peritos
da Misericórdia de Deus em nós e, só assim, seus instrumentos ao abraçar, de modo
sempre novo, a humanidade ferida. “Cristo não nos salva da nossa humanidade, mas através
dela; não nos salva do mundo mas veio ao mundo para que o mundo seja salvo por Ele
(cf. Jo 3, 17)” (Bento XVI, Mensagem Urbi et Orbi, 25 de Dezembro de 2006). Por fim,
somos presbíteros pelo Acto mais nobre da Misericórdia de Deus e ao mesmo tempo da
Sua predilecção, o Sacramento da Ordem. Em segundo lugar, na insuprimível e ardente
sede d’Ele, a dimensão mais autêntica do nosso Sacerdócio é a súplica, a oração simples
e contínua, que se aprende na oração silenciosa; ela caracterizou sempre a vida dos
Santos e deve ser pedida incessantemente. Esta consciência da relação com Ele é quotidianamente
submetida à purificação da prova. Todos os dias, de novo, nos apercebemos que este
drama não é poupado nem sequer a nós, Ministros que agem in Persona Christi Capitis:
não podemos viver um só momento na Sua presença, sem o doce anseio por reconhecê-l'O,
conhecê-l’O e aderir de novo a Ele. Não cedamos à tentação de olhar para o nosso ser
Sacerdotes como para um inevitável e indelegável peso, já assumido, o qual se pode
cumprir “mecanicamente”, até com um programa pastoral organizado e coerente. O Sacerdócio
é a vocação, o caminho, o modo através do qual Cristo nos salva, com o qual nos chamou,
e nos chama agora, a viver com Ele. A única medida adequada, face à nossa Santa
Vocação, é a radicalidade. Esta total dedicação, na consciência da nossa infidelidade,
só pode realizar-se como uma renovada e orante decisão que, depois, Cristo realiza
dia após dia. O próprio dom do celibato sacerdotal deve ser acolhido e vivido nesta
dimensão de radicalidade e de total configuração com Cristo. Qualquer outra posição
em relação à realidade da relação com Ele corre o perigo de se tornar ideológica.
Também a quantidade, por vezes extraordinariamente grande, de trabalho que as
condições contemporâneas de ministério exigem que enfrentemos, longe de nos desencorajar,
deve estimular-nos a cuidar, com atenção ainda maior, a nossa identidade sacerdotal,
a qual tem uma raiz irredutivelmente divina. Neste sentido, numa lógica oposta à do
mundo, precisamente as particulares condições do ministério, devem estimular-nos a
“elevar a qualidade” da nossa vida espiritual, testemunhando com mais convicção e
eficácia, a nossa pertença exclusiva ao Senhor. Para a total dedicação somos educados
por Quem nos amou primeiro. “Fiz-me encontrar por quem não Me procurava. Disse: “Eis-me”
a quem não pronunciava o Meu Nome”. O lugar da totalidade por excelência é a Eucaristia,
porque: “na Eucaristia Jesus não “dá algo” mas dá-se a Si mesmo; Ele oferece o Seu
Corpo e derrama o Seu Sangue. Desta forma doa a totalidade da Própria existência,
revelando a fonte originária deste amor” (Sacramentum caritatis, 7). Sejamos fiéis,
irmãos caríssimos, à Celebração quotidiana da Santíssima Eucaristia, não só para cumprir
uma tarefa pastoral ou uma exigência da comunidade que nos está confiada, mas pela
necessidade pessoal absoluta que dela sentimos, como de respirar, como da luz para
a nossa vida, como a única razão adequada para uma existência presbiteral completa.
O Santo Padre, na exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis, repropõe-nos
com vigor a afirmação de Santo Agostinho: “Ninguém come desta Carne sem primeiro adorá-l’A;
pecaríamos se não a adorássemos” (Santo Agostinho, Enarrationes in Psalmos 98, 9).
Não podemos viver, não podemos olhar para a verdade de nós próprios, sem deixarmos
que Cristo olhe para nós e nos gere na Adoração Eucarística quotidiana, e o “Stabat”
de Maria, “Mulher Eucarística”, sob a Cruz de Seu Filho, é o exemplo mais significativo
que nos é dado da contemplação e da adoração do Sacrifício divino. Assim como
a missionariedade é intrínseca à própria natureza da Igreja, também a nossa missão
é ínsita na identidade sacerdotal, e portanto a urgência missionária é uma questão
de consciência de nós próprios. A nossa identidade sacerdotal é edificada e renovada
dia após dia no “tempo transcorrido” com nosso Senhor. A relação com Ele, continuamente
alimentada na oração perpétua, tem como consequência imediata a necessidade de tornar
partícipes dela quantos nos circundam. De facto, a santidade que pedimos quotidianamente,
não pode ser concebida segundo uma estéril e abstracta acepção individualista, mas
é, necessariamente, a santidade de Cristo, a qual é contagiosa para todos: “O estar
em comunhão com Jesus Cristo compromete-nos no Seu “ser para todos”, faz o nosso modo
de ser” (Bento XVI, Spe salvi, 28). Este “ser para todos” de Cristo realiza-se,
para nós, nos Tria Munera dos quais somos revestidos pela própria natureza do Sacerdócio.
Eles constituem a integridade do nosso Ministério, não são o lugar da alienação ou,
pior ainda, de uma mera adaptação funcionalista da nossa pessoa, mas a expressão mais
verdadeira do nosso ser de Cristo; são o lugar da relação com Ele. Para que o Povo
que nos está confiado seja por nós educado, santificado e governado, não significa
uma realidade que nos distrai da “nossa vida” mas é o rosto de Cristo que quotidianamente
contemplamos, como para o esposo o rosto da sua amada, como para Cristo a Igreja Sua
Esposa. O Povo que nos está confiado é o caminho imprescindível para a nossa santidade,
isto é, o caminho no qual Cristo manifesta a Glória do Pai através de nós. “Se
a quem escandaliza um só e o mais pequenino convém que lhe seja atada ao pescoço uma
pedra de moinho e seja lançado no mar [...] então aos que condenam [...] um povo inteiro
o que devem sofrer e que castigo devem receber?” (São João Crisóstomo, De Sacerdotio
VI, 1498). Face à consciência de tão grave tarefa e a uma responsabilidade tão grande
para a nossa vida e salvação, na qual a fidelidade a Cristo coincide com a “obediência”
às exigências ditadas pela redenção daquelas almas, não se deve minimamente duvidar
da graça recebida. Podemos unicamente pedir para cedermos o mais possível ao Seu Amor,
a fim de que Ele aja através de nós, porque deixamos que Cristo salve o mundo agindo
em nós, ou então corremos o risco de atraiçoar a própria natureza da nossa vocação.
A medida da dedicação, queridos irmãos, é de novo e ainda a totalidade. “Cinco pães
e dois peixes” não são muito, é verdade, mas é tudo! A Graça de Deus faz de toda a
nossa insuficiência, a Comunhão que sacia o Povo de Deus. Desta “total dedicação”
participam especialmente os sacerdotes idosos ou doentes que, quotidianamente, exercem
o ministério divino, unindo-se à paixão de Cristo e oferecendo a própria existência
presbiteral, para o verdadeiro bem da Igreja e para a salvação das almas. Por
fim, fundamento imprescindível de toda a vida sacerdotal permanece a Santa Mãe de
Deus. A relação com ela não pode limitar-se a uma prática devocional piedosa mas deve
ser alimentada pela entrega contínua, nos braços da sempre Virgem, de toda a nossa
vida, do nosso ministério na sua totalidade. Maria Santíssima reconduz-nos de novo
também a nós, como a João, aos pés da Cruz do Seu Filho e nosso Senhor, para contemplar,
com ela, o Amor infinito de Deus: “Veio ao mundo a nossa Vida, a Vida verdadeira;
assumiu a nossa morte para a vencer com a superabundância da Sua Vida” (Santo Agostinho,
Confessiones X, 12). Deus Pai escolheu, como condição para a nossa redenção, para
o cumprimento da nossa humanidade, para o Acontecimento da Encarnação do Filho, aguardar
o “Fiat” de uma Virgem perante o anúncio do anjo. Cristo decidiu confiar, por assim
dizer, a própria Vida à liberdade amorosa da Mãe: “Com o conceber Cristo, gerá-lo,
alimentá-lo, apresentá-lo ao Pai no templo, sofrer com o seu Filho morto na Cruz,
ela cooperou de modo totalmente especial para a obra do Salvador, com a obediência,
a fé, a esperança e a caridade fervorosa, a fim de restabelecer a vida sobrenatural
das almas. Por isso foi para nós a mãe na ordem da graça” (Lumen gentium, 61). O
Papa São Pio X afirmava: “Cada vocação sacerdotal vem do coração de Deus, mas passa
através do coração de uma mãe”. Isto é verdadeiro em relação à evidente maternidade
biológica mas também em relação ao “parto” de cada fidelidade à Vocação de Cristo.
Não podemos prescindir de uma maternidade espiritual para a nossa vida sacerdotal:
recomendemo-nos confiantes à oração de toda a Santa Mãe Igreja, à maternidade do Povo,
do qual somos os pastores, mas ao qual está também confiada a nossa guarda e santidade;
peçamos este apoio fundamental. Queridos irmãos, apresenta-se a urgência de “um
movimento de oração que ponha no centro a Adoração Eucarística contínua, no espaço
das vinte e quatro horas, de forma que de todas as partes da terra se eleve sempre
a Deus, uma oração de adoração, de agradecimento, de louvor, de pedido e reparação,
com a finalidade principal de suscitar um número suficiente de santas vocações para
o estado sacerdotal e, ao mesmo tempo, de acompanhar espiritualmente no nível do Corpo
Místico com uma espécie de maternidade espiritual quantos já foram chamados ao sacerdócio
ministerial e estão ontologicamente conformados com o único Sumo e Eterno Sacerdote,
para que sirvam cada vez melhor a Ele e aos irmãos, como aqueles que, ao mesmo tempo,
estão “na” Igreja mas, também “diante” da Igreja (cf. João Paulo II, Pastores dabo
vobis, 16) fazendo as vezes de Cristo e, representando-o, como cabeça, pastor e esposo
da Igreja” (cf. Carta da Congregação para o Clero, 8 de Dezembro de 2007). Delineia-se,
por fim, uma ulterior forma de maternidade espiritual, que acompanhou sempre silenciosamente,
na história da Igreja, a eleita plêiade sacerdotal: trata-se da entrega concreta do
nosso ministério a um rosto determinado, a uma alma consagrada, que seja chamada por
Cristo e, portanto, escolha oferecer-se a si mesma, os sofrimentos necessários e as
fadigas inevitáveis da vida, para interceder a favor da nossa existência sacerdotal,
vivendo deste modo na doce presença de Cristo. Tal maternidade, na qual se encarna
o rosto amoroso de Maria, deve ser pedida na oração, porque só Deus a pode suscitar
e apoiar. Não faltam exemplos admiráveis neste sentido; pensemos nas lágrimas benéficas
de Santa Mónica pelo filho Agostinho, pelo qual chorou “mais do que choram as mães
pela morte física dos filhos” (Santo Agostinho, Confessiones III, 11). Outro exemplo
fascinante é o de Eliza Vaughan, a qual deu à luz e confiou ao Senhor treze filhos;
dos oito filhos todos foram sacerdotes, e das cinco filhas, quatro foram religiosas.
Dado que não é possível ser verdadeiramente mendigo diante de Cristo, maravilhosamente
escondido no Mistério Eucarístico, sem saber pedir concretamente a ajuda efectiva
e a oração que Ele coloca ao nosso lado, não tenhamos receio de nos confiarmos à maternidade
que, certamente, o Espírito suscita para nós. Santa Teresa do Menino Jesus, consciente
da necessidade extrema de oração por todos os sacerdotes, sobretudo pelos tíbios,
escreve numa carta dirigida à irmã Celina: “Vivamos para as almas, sejamos apóstolas,
salvemos sobretudo as almas dos sacerdotes [...]. Rezemos, soframos por eles e, no
último dia, Jesus será grato” (Santa Teresa de Lisieux, Carta 94). Confiemos à
intercessão da Virgem Santa Rainha dos Apóstolos, Mãe dulcíssima, olhando com Ela
para Cristo, na contínua tensão para sermos total, radicalmente Seus; esta é a nossa
identidade! Recordemos as palavras do Santo Cura d’Ars, Padroeiro dos Párocos:
“Se eu já tivesse um pé no Céu e se me viessem dizer para voltar para a terra para
trabalhar pela conversão dos pecadores, voltaria de bom grado. E se para isto fosse
necessário permanecer na terra até ao fim do mundo, levantando-me sempre à meia-noite,
e sofresse como sofro, estaria disposto a fazê-lo de coração” (Frère Athanase, Procès
de l'Ordinaire, p. 993). O Senhor guie e proteja todos e cada um, de modo especial
os doentes e os que mais sofrem, na oferenda constante da nossa vida por amor. Cardeal
Cláudio Hummes e arcebispo Mauro Piacenza Prefeito e secretário da Congregação
para o Clero