O sepulcro está vazio e a ressurreição acontece, não porque Jesus evitasse a morte,
mas porque a olhou de frente e a assumiu por dentro, (con)vencendo-a pela caridade,
em si e nos outros, todos os outros. D. Manuel Clemente, Bispo do Porto na homilia
do dia de Páscoa
(24/3/2008) Deixai-me deter um pouco na saudação que vos fiz: “aqui reunidos na ressurreição
de Cristo…”. Diziam os antigos que a sabedoria começava pelo espanto, a admiração
diante da realidade. Sabedoria nova é a nossa agora, que nunca nos admiraremos bastante
com esta realidade inaudita de estarmos aqui reunidos pela ressurreição de Cristo! No
Evangelho que ouvimos, eram muito poucos, naquela manhãzinha de Jerusalém: Maria Madalena,
depois Pedro e outro discípulo… Muito poucos, num alvoroço repentino. Um túmulo vazio,
as ligaduras no chão, o sudário enrolado à parte: sinais bastantes para que o discípulo
acreditasse. Assim foi, apenas; e assim é agora, com a multidão dos que também acreditamos
e traduzimos o espanto que nos transporta num som maior do que as palavras: Aleluia! Mas,
neste passo, toda a atenção é pouca. Porque é importante o túmulo, ainda que já vazio;
importantes são os sinais duma vida nova, que saiu daqueles panos que a envolviam
sem os desalinhar sequer; ou seja, que deles saiu, brotando outra. É precisamente
assim que tudo verificamos e acreditamos, como discípulos predilectos. Um túmulo
vazio, mortalhas feitas sinas de vida nova… E por esta ordem também, indispensavelmente
por esta ordem. Quer dizer, da morte e dos seus sinais mais pesados – sepulcro, ligaduras
– à vida e à sua realização total, que só entrevemos por enquanto. É este o âmago
do cristianismo, irredutível a qualquer conjectura humana, passada, presente ou futura.
Com estas referências temporais, porque são sempre fáceis as reedições de velhos devaneios…
Como seria, por exemplo, reduzir a ressurreição a uma “mera” reanimação dum cadáver,
com os muitos contornos da ficção científica; ou reduzi-la ainda mais, à pura persistência
duma história ou duma moral da história, senão mesmo duma lenda piedosa… Tudo isto
e muito mais será possível, se nos desviarmos da estrada estreita, indicada pelos
imprescindíveis sinais que escutámos. Antes de mais o túmulo, local de tenebrosas
coisas e até da destruição delas. A morte foi o caminho da ressurreição de Cristo.
A morte tal e qual, sem mitigações nem fugas. Com requintes de crueza até, como a
coroa de espinhos e os cravos. Como humanidade, tanto sofremos a morte como somos
tristemente capazes de a infligir aos outros, com crueldade ou displicência... Entretanto,
a morte que aquele túmulo e todos os túmulos assinalam, é a face mais oculta da realidade
inevitável, que a todos nos toca e quase nos define, precisamente como “mortais”.
Desde que a detectamos – no caminho existencial de cada um ou da humanidade inteira
– tememos-lhe o rosto sombrio ou tentamos afastá-lo da ideia. E sucedem-se os escapes,
grosseiros ou requintados. Desde o famoso “comamos e bebamos que amanhã morreremos”,
já biblicamente referido, até a um maniqueísmo que apresse a autodestruição material
para libertar não sei que “alma”, ou à negação mais trabalhosa do eu e do desejo,
para atingir a “paz” da inconsistência… A algo disto, não somos completamente alheios.
Mas, como cristãos, só poderemos encarar a morte como Cristo o fez: de frente e por
dentro. Significa assumir de facto a nossa actualidade mortal – de todos e de cada
um -, com os sinais dessa mesma mortalidade, sem fechar os olhos nem virar o rosto.
E encontrar nessa mesma condição a redenção que Cristo lhe outorgou, ao assumi-la
e ressuscitá-la, por inteiro. Vai isto muito ao contrário da mentalidade corrente.
Pelo menos da que alguns querem fazer passar por tal, porventura para legitimar desistências;
e aos mais variados níveis, dos práticos aos legais. A vida humana é um bem total,
ainda que frágil e sempre dependente, mesmo quando parece segura e realizada. Transporta
desde a concepção os sinais duma e outra coisa, quer da maior potencialidade quer
do maior risco. E, tendo uma acepção individual e pessoal indiscutível, tem também
uma dimensão solidária indispensável. Quer isto dizer que, sendo frágil em cada
um de nós, da concepção à morte natural, depende do apoio de todos; sendo mortal,
desde que começa a existir, só pode ser restaurada pelo seu próprio Autor divino.
Quanto ao fim, está garantido na ressurreição de Cristo, precisamente de entre os
mortos. Quanto ao seu curso terreno, do ventre materno ao leito da enfermidade, não
pode prescindir do nosso concurso positivo. E isto em todo o arco da existência
de cada um. Mais ou menos desejado e previsto, mais ou menos indesejado e imprevisto,
cada momento da nossa vida igualmente nos constitui e constitui os outros: uns com
os outros, uns para os outros. Quando desistimos de algum item desta essencial solidariedade,
aí sim, já perdemos a luta contra a morte, porque nos tornámos aliados dela; tristes
aliados, que ela, mais forte, descartará de seguida. Uma sociedade que despreze a
vida, mesmo quando alega razões humanitárias para o fazer, cede à morte um espaço
que esta se apressará a alargar. Não há qualquer raciocínio de consequência que possa
sustentar a vida como um todo, quando lhe debilita alguma das etapas. O sepulcro
está vazio e a ressurreição acontece, não porque Jesus evitasse a morte, mas porque
a olhou de frente e a assumiu por dentro, (con)vencendo-a pela caridade, em si e nos
outros, todos os outros. Dificuldades não faltaram a Maria, da concepção ao nascimento
de Jesus. Nem faltariam depois àquela Família, de Belém ao Egipto e do Egipto a Nazaré.
Nem a Jesus, nos três anos de vida pública, indo directamente ao encontro da morte,
como em Naim (o filho da viúva) e em Betânia (o seu amigo Lázaro), ou deixando-se
abordar por ela (os leprosos). Por fim, não fugiu à sua, porque nos tinha de salvar
na nossa. À cruz, temo-la agora como sinal de glória, devolvida que foi e triunfante
pela ressurreição de Cristo. Por isso mesmo, quando a morte se avizinhar, imprimindo-nos
porventura os seus traços mais deformantes, aí mesmo encontramos aquele que não os
alheou de si. É impressionante o realismo desta antiga profecia, que os discípulos
de Cristo logo verificaram nele: “Olhai, o meu servo terá êxito, será muito engrandecido
e exaltado. Assim como muitos ficaram espantados diante dele, ao verem o seu rosto
desfigurado e o seu aspecto disforme, agora fará com que muitos povos fiquem bem impressionados.
Os reis ficarão de boca aberta, ao verem coisas inenarráveis, e ao contemplarem coisas
inauditas” (Is 52, 13-15). Voltemos por instantes ao espanto de que nasce
a sabedoria. – Não é espantoso, irmãos e irmãs, que tenhamos vivido o Tríduo Pascal
em torno de um condenado, de um homem destruído pela lei daquele tempo, injusta e
mal aplicada, e pela tremenda adversidade física e psíquica, que se abateu sobre ele
em crudelíssima paixão?! Condenado, desfigurado e por fim exangue numa cruz?! E igualmente
espantoso é não desviarmos os olhos dessa mesma cruz e do seu condenado, vendo em
cada um dos sinais da sua morte outros tantos sinais de vida, porque tudo foi assumido
e entregue, ao Pai e a nós, na caridade do Espírito. E não é também espantoso
que, a partir daí, tantos e tantas se aproximem dos seus irmãos mais fracos ou doentes,
em todo o percurso da respectiva existência, activando neles a mesma vitória em que
o Calvário redundou?! Esta e só esta pode ser a vitória sobre a morte, não a chamando
nem alheando, antes percorrendo-a na senda estreita e vitoriosa do Crucificado-Ressuscitado.
Esta e só esta, pode e deve ser a atitude de quem soube interpretar os sinais de vida
no sepulcro vazio e nas ligaduras despejadas. Esta e só esta dará à sociedade actual,
na Páscoa de Cristo, a esperança necessária para não desistir de si mesma. - Dificuldades?
Resistências e oposições? Decerto as encontramos, e nem precisaremos de sair de nós
próprios, se porventura não formos tão consequentes quanto devemos ser, neste ponto
primordial de ver e promover a vida à luz da Páscoa de Cristo, que não ilude o sofrimento
e a morte, antes os preenche e salva na caridade concreta. – Outras resistências e
oposições? Ultrapassemo-las com serenidade e coerência, quer por elucidação teórica
quer por acção solidária. Como nos dizia um Apóstolo: “Não vos deixeis perturbar;
mas no íntimo do vosso coração, confessai Cristo como Senhor, sempre dispostos a dar
a razão da vossa esperança a todo aquele que vo-la peça; com mansidão e respeito,
mantendo limpa a consciência…” (1 Pe 3, 15-16). Diante de tantos sinais
da morte, celebremos irmãos e irmãs, em Páscoa verdadeira, a ressurreição de Cristo,
que preencha e renove o mundo inteiro!
Sé do Porto, 23 de Março de 2008 +
Manuel Clemente, Bispo do Porto