Páscoa, a festa do povo sacerdotal: há a ilusão que o futuro do homem «está exclusivamente
nas suas mãos» - lamentou o Patriarca de Lisboa na homilia da Missa Crismal
(20/3/2008) No quadro das celebrações pascais esta é, de modo especial, a Festa
da Igreja, Povo Sacerdotal. Um Povo que o Senhor escolheu, que gerou no seu sangue,
guia como Bom Pastor, renova e faz crescer com a graça da Páscoa, continuamente actualizada
pela força do Espírito Santo. Celebramos, hoje, essa poderosa acção da graça de Cristo
ressuscitado e dos meios sacramentais, instrumentos da sua acção eficaz na Igreja.
Um dos mais graves erros da cultura contemporânea, marcada por uma visão do homem
considerado auto-suficiente na sua auto-realização, é minimizar ou mesmo negar a necessidade
que o homem tem da força de Deus para se realizar a si mesmo, na ilusão de que o futuro
do homem está, exclusivamente, nas suas mãos, fruto do seu poder e engenho. Este demasiado
optimismo humano pode penetrar na Igreja e nos critérios da acção pastoral, como se
o crescimento do Reino de Deus, da Igreja como novo Povo de Deus, dependesse, sobretudo,
da nossa acção humana, esquecendo o que o Senhor disse aos discípulos: “Sem Mim nada
podereis”. Conceber a nossa acção pastoral a partir desta convicção, significa necessariamente
conceber a nossa acção humana como caminho da acção do Espírito de Deus, e dar primazia
aos meios sacramentais da graça, que hoje se nos impõem com a força da Acção Litúrgica.
2. Esta força criadora da Páscoa exprime a plenitude do poder sacerdotal de Jesus,
morto e ressuscitado. Em Cristo toda a intervenção de Deus na história concentra-se
no Seu poder sacerdotal, que Ele exerce na Igreja através da força do Seu Espírito
que lhe comunica. O Espírito em acção é o Espírito de Cristo ressuscitado. Por isso,
o Senhor é o único Sacerdote, porque basta a Sua capacidade de mediação entre Deus
e os homens, e é o Sacerdote definitivo, porque a mediação que realiza é também entre
o tempo e a eternidade, entre a Igreja peregrina e a Igreja escatológica. A acção
de Cristo ressuscitado na Igreja, através do Espírito, é tão forte e decisiva, que
a une a Si, a faz participar da Sua plenitude sacerdotal, a identifica com Ele e com
a Sua acção, tornando-a sacramento da Sua mediação salvífica para toda a humanidade.
A maior dignidade dos cristãos é serem membros desse Povo Sacerdotal, unidos a Jesus
Cristo sumo e eterno Sacerdote. Essa dignidade fora anunciada e prometida pelo profeta
Isaías no texto que escutámos há pouco: “Vós sereis chamados sacerdotes do Senhor
e tereis o nome de ministros do nosso Deus” (Is. 61,6). Por isso, o Apocalipse pode
proclamar essa promessa realizada, pondo em realce o mistério da Igreja: “Àquele que
nos ama e pelo Seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes
para Deus, Seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos” (Apc. 1,6).
A Igreja é o fruto e a manifestação explícita da fecundidade sacerdotal de Cristo.
Ele é a cabeça do Povo Sacerdotal. E para que este Povo seja sacerdotal, na expressão
viva da sua fé, Cristo exerce continuamente essa primazia. Por isso, ele constitui
Apóstolos, sacerdotes porque membros do Povo Sacerdotal, sacerdotes porque exercem,
na pessoa de Cristo, o Seu poder sacerdotal em favor de todo o Povo. É uma interacção
entre Cristo e a Igreja: não há Povo Sacerdotal sem a acção contínua de Cristo, Sumo
Sacerdote, através do sacerdócio apostólico, a que chamamos sacerdócio ministerial;
nem este tem sentido sem ser na Igreja e para a Igreja. Esta, na sua qualidade de
Povo Sacerdotal, é o lugar da convergência e da sintonia entre o sacerdócio de todos
os fiéis e o sacerdócio ministerial em que alguns fiéis foram investidos, para serviço
de Jesus Cristo e bem de toda a Igreja. Neste dia em que tradicionalmente lembramos,
de modo particular, os sacerdotes, devemos fazê-lo evocando todo o Povo Sacerdotal,
pois o sacerdócio ministerial é, apenas, mais uma expressão da dignidade sacerdotal
a que foi elevada toda a Igreja ao identificar-se com Cristo Sacerdote. 3. As
celebrações pascais fazem-nos tomar consciência das expressões deste sacerdócio do
Povo de Deus, com a mediação do sacerdócio ministerial, antes de mais, a Eucaristia.
A paixão, morte e ressurreição são a grande expressão do sacerdócio de Cristo. Aí
Ele foi sacerdote e vítima do sacrifício oferecido, oferente e oferta, louvor perfeito
da humanidade devido a Deus nosso criador. Esta oferta de Cristo tornou-se perene,
porque a Igreja pode oferecer, com Cristo, como Cristo Se oferece. Na Eucaristia,
exprime-se plenamente o Cristo redentor: precisou de nos redimir, para com Ele podermos
oferecer o Seu próprio sacrifício, actualizado por nós, na nossa dor, no nosso ardor
pelo Reino de Deus, na nossa solidariedade e compaixão por todos os homens. A
Eucaristia é a expressão decisiva do Povo Sacerdotal: nela, a Igreja une-se ao seu
Senhor, descobre-O sempre de novo como seu Pastor e Redentor. Porque oferece o mesmo
sacrifício, identifica-se com Ele, torna-se o Seu corpo. Bento XVI afirma, citando
Santo Agostinho: “O pão que vedes sobre o altar, santificado com a Palavra de Deus,
é o Corpo de Cristo. O cálice, ou melhor, aquilo que o cálice contém, santificado
com as palavras de Deus, é Sangue de Cristo. Com estes (sinais), Cristo Senhor quis
confiar-nos o seu Corpo e o seu Sangue, que derramou por nós para a remissão dos pecados.
Se os receberdes bem, vós mesmos sois aquele que recebestes. Assim, tornamo-nos não
apenas cristãos, mas o próprio Cristo” . Na Eucaristia, o Povo Sacerdotal vive
a síntese e percebe a diferença na complementaridade entre o sacerdócio ministerial
e a qualidade sacerdotal de toda a Igreja. Para nós sacerdotes, ela define o nosso
ministério e proclama a nossa exigência de santidade e de fidelidade a Jesus Cristo
de quem somos ministros e que tornamos presente na Sua oferta sacrificial e de louvor,
e com a qual partilhamos o dom do pão repartido. Aprender a celebrar a Eucaristia,
guiar, como pastor, todo o povo para celebrar cada vez melhor e identificar a nossa
vida com Cristo, que tornamos presente, é desafio de toda a nossa vida. 4. Esta
qualidade sacerdotal da Igreja exprime-se, depois, na celebração de todos os meios
de graça, sacramentos e sacramentais, instrumentos da acção santificadora do Espírito
de Cristo. O Povo Sacerdotal nasce, cresce, descobre a vida nova, caminha para a plenitude
da Pátria Celeste, celebrando estes sinais sacramentais, que brotam da Páscoa de Jesus.
Como esta celebração de hoje nos mostra, todos conduzem à Eucaristia, marcam o ritmo
de um caminho de santidade e mantêm viva a esperança da glória celeste. Ao celebrá-los,
acreditamos e afirmamos que a Igreja é obra do Espírito de Cristo e não apenas da
nossa capacidade humana. Sobretudo nós, os sacerdotes, não podemos cair nessa confusão
de considerarmos a eficácia do nosso ministério fruto das nossas acções humanas. Nunca
esqueçamos a palavra do Senhor: “Sem Mim nada podeis fazer”. A primeira destas
realidades sacramentais é a Palavra de Deus, que nos pode fazer entrar na intimidade
de Deus, escutando o Seu Verbo eterno. É importante o ministério do sacerdote conduzindo
as pessoas e as comunidades nessa escuta da Palavra, que é prévia à celebração de
todos os sacramentos e sacramentais. Isso exige de nós que vivamos da Palavra, que
a escutemos com empenho e com fé, que nunca a anunciemos sem a ter escutado pessoalmente,
que nunca a substituamos pela nossa simples palavra humana. Se escutarmos acuradamente
a Palavra, não só presidiremos bem a todos os sacramentos, mas conduziremos todo o
Povo Sacerdotal a descobrir a grandeza e a dignidade de os poder celebrar e, através
deles, se identificar mais profundamente com Cristo, Seu Senhor. 5. É por isso
que na celebração da Páscoa a Palavra é rainha; com a eficácia do Verbo criador, realiza
eficazmente a salvação que anuncia, de modo particular os sacramentos da iniciação
cristã: o Baptismo, a Confirmação, a Eucaristia. Chamamos-lhe de iniciação cristã,
porque realizam a consagração e a identificação com Cristo, ponto de partida permanente
da fidelidade cristã. Eles afirmam a Eucaristia como a plenitude de todos os dons,
de toda a acção do Espírito; para ela convergem, os dons de Deus e o nosso esforço
de fidelidade na busca da salvação. A Eucaristia é a plenitude da iniciação cristã
. A nossa Diocese tem vindo, há vários meses, a preparar um documento que nos
ajude a repor a nossa acção pastoral nesta perspectiva sobrenatural da edificação
da Igreja, através dos sacramentos e começámos, exactamente, pela iniciação cristã.
Ao longo dos séculos, nas diversas adaptações pastorais, nem sempre se salvaguardou
esta centralidade dos sacramentos da iniciação, que preparam e encaminham para a Eucaristia.
Há um longo caminho a realizar, de catequese, de esclarecimento dos fiéis, mas com
a firmeza da verdade e orientados pelo Magistério da Igreja, expresso quer nos preceitos
canónicos, quer nas orientações litúrgicas. Todos sabemos que isto depende muito dos
sacerdotes, da sua obediência pastoral, da humildade de não impor a sua maneira de
ver, tantas vezes pragmática, à orientação da Igreja. Todos em conjunto, em presbitério,
do mesmo modo que procuramos o melhor caminho, havemos de, todos unidos, percorrê-lo,
na certeza de que só assim seremos dignos ministros de Jesus Cristo, para bem de todo
o Povo Sacerdotal. Sé Patriarcal, 20 de Março de 2008 D. JOSÉ POLICARPO,
Cardeal-Patriarca de Lisboa