Caridade e justiça, na conversão pessoal: Mensagem do Bispo do Funchal para
a Quaresma
(13/2/2008) “Voltai-vos para o Senhor de todo o coração (…). Rasgai o vosso
coração e não os vossos vestidos” (Joel 2, 12). 1. “Voltai-vos para o Senhor de
todo o coração” – É com estas palavras do profeta Joel, recordadas na liturgia de
Quarta-Feira de Cinzas, que me dirijo a vós, caros Diocesanos da Madeira e Porto Santo,
ao iniciarmos o santo tempo da Quaresma. Nelas vai o meu convite e apelo a que vivamos,
com intensidade, este “tempo favorável” à nossa salvação, em caminhada solidária com
toda a Igreja. A Quaresma é tempo de preparação para a Páscoa; tempo de saborear
e aprofundar o sentido do nosso Baptismo, nas suas múltiplas implicações; tempo de
aceitar o desafio de caminharmos ao encontro do verdadeiro rosto de Cristo, em escuta
atenta da Palavra, na oração e no acolhimento da reconciliação sacramental; tempo
de voltar para o Senhor com todo o coração, em conversão de amor a Deus e aos irmãos.
Juntos, nesta caminhada, vamos confiantes no amor misericordioso de Jesus, que
faz caminho connosco, pelo deserto das nossas fragilidades e pecados, nos perdoa e
conforta, nos mostra o caminho da alegria pascal. Caridade e justiça 2. Tendo,
ainda, muito presente a reflexão das últimas Jornadas de Actualização sobre “A Doutrina
Social da Igreja - Fonte de Esperança”, é particularmente forte para a nossa Diocese
o apelo a um compromisso sempre maior de testemunhar a caridade e construir a justiça.
A natureza íntima da missão da Igreja exprime-se não apenas no anúncio da Palavra
e na celebração dos Sacramentos, mas também e de modo muito particular no serviço
da Caridade. A Igreja é fruto e habitação da caridade de Deus e há-de ser expressão
dela. Na sua missão, porém, a Igreja não poderá limitar-se à acção caritativa, mediante
as suas próprias estruturas de assistência social, mas terá também de contribuir e
de se empenhar para que a justiça se implante, para que se reconheça e realize aquilo
que é justo. A justiça não é a caridade, todavia precisa da caridade para ser verdadeira
justiça. Ambas devem manter-se unidas. Não poderão, porventura, ser tomadas as
obras da caridade como pretensas formas de “pacificar” algumas consciências, fugindo
às obrigações da justiça? – O Concílio Vaticano II insiste, fortemente, na relação
inseparável entre caridade e justiça, “para que não se ofereça como dom da caridade
aquilo que já é devido a título de justiça” (GS, 69; AA, 8). Será que poderemos
construir a justiça sem a caridade? Poderá a justiça subsistir sem a caridade? – A
história do Homem mostra-nos que, somente com a justiça, não resolveremos os grandes
problemas do Homem. Diz-nos o Papa Bento XVI, na sua primeira Encíclica, que “o amor
- ‘caritas’ - será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há qualquer
ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor” (Deus é Amor,
28 b). Impõe-se, por isso, passar do campo da estrita justiça à abundância da caridade.
Sempre mais e melhor 3. A Quaresma é, na tradição da Igreja, um tempo especial
de conversão e de graça, propício à prática das boas obras; uma oportunidade para
crescermos no amor-caridade, tanto nas relações inter-pessoais, como na acção organizada
da caridade da Igreja, através de serviços apropriados e vocacionados para ajudar
os que mais precisam. São muitas as necessidades a atender, são muitas as formas de
concretizar o auxílio material e espiritual significado nas tradicionais obras de
misericórdia. Na nossa Diocese, não podemos esquecer a generosidade de tanta gente
junto dos mais pobres, bem como a relevante actividade da Caritas Diocesana, das Conferências
de S. Vicente de Paulo e de um número significativo de Instituições Particulares de
Solidariedade Social. Apesar das suas limitações e eventuais dificuldades, há que
dar graças a Deus pelos serviços prestados, muitas vezes em regime de voluntariado
e com a alma cristã do amor-caridade, que pretendem testemunhar. Que procurem fazer
sempre mais e sempre melhor. Também a caridade da Igreja se há-de manifestar na
promoção da justiça, estimulando a participação dos cristãos na sociedade civil, em
acções e instituições de defesa dos direitos humanos, nomeadamente nos domínios da
família e da vida, do trabalho e da economia, da educação e da saúde. A condição cristã
envolve uma vocação pública, a exercer como proposta de humanização da nossa sociedade.
A prática da esmola 4. Na sua Mensagem para a Quaresma deste ano, o Papa Bento
XVI propõe aos fiéis a prática da esmola como “forma concreta de socorrer quem se
encontra em necessidade e, ao mesmo tempo, uma prática ascética para se libertar da
afeição aos bens terrenos” (nº 1). A esmola dada aos pobres constitui um dos belos
testemunhos da caridade fraterna e, tendo em atenção o valor social dos bens materiais,
em muitos casos, “é um dever de justiça, ainda antes de ser um gesto de caridade”
(nº 2). A esmola, diz o Papa, leva-nos ao encontro dos outros e a partilhar o
que possuímos, discretamente e para a maior glória de Deus, na certeza de que Deus
“vê no segredo” e no segredo recompensará. Leva-nos a experimentar, num gesto de doação,
a beleza da vida como bênção, paz, satisfação interior, alegria e perdão. A esmola
educa para a generosidade do amor e o que lhe dá valor é o amor (cf. nº 5). Interpelando-nos,
ainda, a este propósito, Bento XVI recorda as palavras de S. João: “Aquele que tiver
bens deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o coração, como
pode estar nele o amor de Deus?” (1Jo 3,17). A grande mudança, a grande conversão
da nossa vida deve ser sempre a conversão a um amor maior, mais sincero e generoso,
mais dedicado e universal. Se Deus é Amor, o importante é amar! Renúncia quaresmal
5. “Voltai-vos para o Senhor de todo o coração” (Joel 2, 12) – É na contemplação
do rosto de Cristo, que dá a vida pela salvação de todos os homens e mulheres, que
nos poderemos lançar na ousadia da caridade; só partindo d’Ele poderemos, como Igreja,
descobrir novos caminhos e projectos criativos, capazes de infundir uma sólida esperança
para viver e fomentar, em toda a sociedade, uma cultura de justiça, de solidariedade,
de fraternidade e de amor. Entre nós é já tradição que uma das expressões da caridade
seja a nossa renúncia quaresmal, partilhando cada um mais generosamente aquilo que
tem, em favor dos mais necessitados, e colaborando em projectos propostos pela própria
Diocese, num gesto de comunhão eclesial, como acontecia na Igreja primitiva (cf. 2Cor
8,9; Rom 15,25-27). Também segundo a tradição, a nossa renúncia quaresmal terá
duas finalidades: uma de apoio a projectos da Igreja noutros Países e outra para necessidades
da Diocese. Neste ano será repartida, em partes iguais, para as vítimas das recentes
cheias em Moçambique, consideradas as piores dos últimos anos, e para um Fundo Social
Diocesano, tendo em vista uma ajuda mais eficaz às situações de pobreza real, muitas
vezes envergonhada, que algumas instituições da Igreja bem conhecem, por exercerem
a sua actividade numa relação muito próxima e personalizada. Sejamos generosos! Com
a bênção de Maria 6. Quaresma é tempo de oração. Sem vida de oração não é possível
viver o Evangelho e voltar o coração para o Senhor, entrar no dinamismo da caridade,
fazer-se ao largo e ousar ir mais longe. A sociedade precisa de cristãos comprometidos,
porque é urgente levar Cristo para o meio da vida das pessoas, com palavras e obras
carregadas de ânimo e de esperança, para que ninguém desanime e todos se levantem,
sempre, com novo vigor. Sem oração, porém, tal compromisso não será possível. É
pois urgente rezar e aprender a rezar bem, alimentados pela Palavra de Deus e pela
Eucaristia. Só em Cristo aprenderemos o louvor, a acção de graças, a entrega que dá
sentido aos nossos passos. Maria, Mãe da Igreja e nossa Mãe, nos ensine a rezar,
nos abençoe e acompanhe nesta caminhada, que juntos empreendemos, rumo à Páscoa do
seu Filho Jesus. Catedral do Funchal, 6 de Fevereiro de 2008 D. António José
Cavaco Carrilho, Bispo do Funchal