Encontro com autoridades e corpo diplomático, em Viena: Bento XVI salienta que a Europa
adquirirá uma melhor consciência de si mesma se assumir no mundo a responsabilidade
que corresponde à sua particular tradição espiritual, às suas extraordinárias capacidades
e à sua grande força económica.
(7/9/2007) Faz parte da herança europeia uma tradição de pensamento, para a qual é
essencial um elo substancial entre fé, verdade e razão. Trata-se de se perguntar se,
sim ou não, é a razão que está no princípio de todas as coisas e as fundamenta”. Palavras
de Bento XVI no momento mais solene do seu primeiro dia em Áustria: o encontro com
os membros do governo e autoridades juntamente com o corpo diplomático acreditado
em Viena. Um encontro que teve lugar, ao fim da tarde, no imponente cenário da Sala
de Recepções do Hofburg, o antigo palácio imperial, no coração de Viena.
“Encontramo-nos
aqui num lugar histórico, a partir do qual, durante séculos, foi governado um império
que uniu vastas partes da Europa central e oriental. O lugar onde estamos e o momento
que vivemos oferecem-nos uma ocasião providencial para fixar o nosso olhar sobre toda
a Europa de hoje. Depois dos horrores da guerra e das experiências traumatizantes
do totalitarismo e da ditadura, a Europa empreendeu o caminho em direcção à unidade
do Continente, tendente a assegurar uma ordem duradoura de paz e desenvolvimento justo.
A divisão que, durante décadas, dilacerou dolorosamente o Continente, encontra-se,
de facto, superado no plano político, mas a unidade permanece ainda em grande parte
por realizar no espírito e no coração das pessoas.”
Embora admitindo que,
“depois da queda da cortina de ferro em 1989, uma esperança excessiva deu depois lugar
à decepção” e que, “sobre alguns aspectos, se podem formular críticas justificadas
perante certas instituições europeias”, Bento XVI fez questão de sublinhar a importância
e alcance do processo de unificação em curso:
“Em todo o caso o processo de
unificação é uma obra de grande alcance que permitiu a este Continente, minado ao
longo de tanto tempo por contínuos conflitos e por desastrosas guerras fratricidas,
viver um período de paz que desde há muito não havia conhecido. Em particular, a participação
neste processo constitui para os países da Europa central e oriental um ulterior estimulo
para consolidar neles a liberdade, o estado de direito e a democracia”.
Neste
contexto, o Papa recordou o “contributo” que o seu predecessor João Paulo II “forneceu
a este processo histórico”, como também a própria Áustria: “A Áustria, que se encontra
nos confins do Ocidente e do Oriente de então, muito contribuiu também, como país-ponte,
para esta união…”.
Bento XVI advertiu que a “casa Europa” só poderá ser para
todos “um lugar onde é bom viver se se edificar sobre uma sólida base cultural e moral
de valores comuns provenientes da nossa história e das nossas tradições”.
“A
Europa não pode e não deve renegar as suas raízes cristãs, que são uma componente
dinâmica da nossa civilização para avançar neste terceiro milénio. O cristianismo
modelou profundamente este continente”.
Foi neste contexto que o Papa quis
referir expressamente o Encontro Ecuménico Europeu que decorre nestes dias em Sibiu,
na Roménia, tendo como tema “A luz de Cristo brilha para todos. Esperança de renovação
e de unidade na Europa”, assim como o “Encontro de Católicos” da Europa central, em
2004, em Mariazell, sobre “Cristo – esperança da Europa”.
Falando do “modelo
de vida europeu”, entendido como uma “ordem social que conjuga eficácia económica
com justiça social, liberalidade e abertura, mas também manutenção dos valores”, Bento
XVI recordou o desafio com que se confronta este modelo perante o fenómeno da mundialização:
“Não se pode deter a mundialização, mas a política tem o dever urgente e
a grande responsabilidade de lhe dar uma regulamentação e limites capazes de evitar
que ela se realiza em detrimento dos países mais pobres e das pessoas pobres nos países
ricos, assim como das gerações futuras”.
O Papa referiu “terríveis erros”
em que caiu a Europa: “reduções ideológicas da filosofia, da ciência e até da fé,
abuso da religião e da razão para fins imperialistas, degradação do homem por um materialismo
teórico e prático e finalmente a degenerescência da tolerância numa indiferença privada
de referências a valores permanentes”. Contudo, reconheceu, “uma das características
da Europa, que a distingue e qualifica no vasto panorama das culturas mundiais – acrescentou
– é a sua capacidade de autocrítica”.
Foi partindo desta capacidade “europeia”
de rever posições erradas em que caiu, que Bento XVI passou aos dois outros temas
do seu discurso no Hofburg de Viena – “a vida” (com referência ao aborto e à eutanásia)
e o “diálogo da razão”, para depois concluir com uma referência às “tarefas da Europa
no mundo”.
Antes de mais, a vida.
“Foi na Europa que se formulou pela
primeira vez o conceito dos direitos humanos. O direito humano fundamental, pressuposto
de todos os outros direitos, é o direito à própria vida. Desde a concepção até ao
seu termo natural. Portanto, o aborto não pode ser um direito humano – é o seu oposto.
É uma ‘profunda ferida social’, como sublinhava incansavelmente o nosso defunto confrade
o cardeal Franz Konig”
O Papa sublinhou que não estava a exprimir “um interesse
especificamente eclesial”, mas sim a falar “por uma profunda preocupação pelos valores
humanos”. E fez apelo a que tudo se faça para “tornar os países europeus de novo mais
abertos ao acolhimento dos filhos”, a bem de toda a sociedade. O que exige que “se
consiga criar de novo nos nossos países um clima de alegria e de confiança na vida,
em que as crianças não sejam sentidas como um peso, bem sim como um dom para todos”.
Idêntica
preocupação manifestou Bento XVI sobre o debate relativo ao que é designado como “ajuda
activa a morrer”. “A justa reposta ao sofrimento em fins de vida é uma atenção
cheia de amor, o acompanhamento a caminho da morte – nomeadamente com a ajuda da medicina
“paleativa” (?) – e não uma ‘ajuda activa para morrer’.
Relativamente
ao diálogo da razão, Bento XVI sublinhou que “faz parte da herança europeia uma tradição
de pensamento para a qual é essencial um elo substancial entre fé, verdade e razão”. Trata-se
de se perguntar se, sim ou não, é a razão o princípio de todas as coisas e o seu fundamento.
Trata-se de se perguntar se é o acaso e a necessidade que estão na origem da realidade,
ou seja, se a razão é um produto secundário, fortuito, do irracional e se, no oceano
da irracionalidade, ao fim e ao cabo já não tem nenhum sentido a razão. Ou se, pelo
contrário, permanece verdadeiro o que constitui a convicção de fundo da fé cristã
– No princípio era o Verbo – na origem de todas as coisas, há a Razão criadora de
Deus, que decidiu tornar-se participante a nós, seres humanos”. Citado, neste contexto,
o filósofo (não cristão) Juergen Habermas. Bento XVI concluiu este seu denso discurso
com uma referência à “responsabilidade única” que toca à Europa no mundo. “Acima de
tudo, a Europa não deve renunciar a si mesma”. “O Continente que, no plano demográfico,
envelhece rapidamente, não se deve tornar um continente espiritualmente velho. Aliás
a Europa adquirirá uma melhor consciência de si mesma se assumir no mundo a responsabilidade
que corresponde à sua particular tradição espiritual, às suas extraordinárias capacidades
e à sua grande força económica.
Daqui uma consequência prática e político-económica
para a União Europeia: A União Europeia deveria portanto desempenhar um papel de
liderança na luta contra a pobreza no mundo e no empenho a favor da paz… em face,
por exemplo, dos urgentíssimos desafios colocados pela África, das horríveis tragédias
deste continente - tais como i flagelo da sida, a situação do Darfour, a injusta exploração
dos recursos naturais e o preocupante tráfico de armas.
Rematando finalmente
a sua longa intervenção, o Papa voltou a referir o papel específico da Áustria: “Um
país que tanto recebeu, muito deve dar. Pode contar muito sobre si mesmo e exigir
também de si certa responsabilidade em relação aos países vizinhos, à Europa e ao
mundo”. Nomeadamente no que diz respeito à fé cristã: “Muito do que a Áustria possui,
o deve à fé cristã e à sua rica influência sobre as pessoas”. “Uma Áustria sem uma
fé cristã viva, já não seria a Áustria!”