Toda a actualidade de Francisco - paz, salvaguarda da natureza, diálogo - se radica
na sua profunda conversão a Cristo: Bento XVI na homilia da Missa em Assis
(17/6/2007) Bento XVI deslocou-se a Assis no âmbito das celebrações dos 800 anos
da conversão de São Francisco. Não admira, pois, que tenha sido a conversão o fio
condutor da sua homilia, partindo naturalmente das leituras deste XI Domingo do Tempo
Comum. “Falar de conversão significa ir ao coração da mensagem cristã e ao mesmo
tempo às raízes da existência humana”, – observou o Papa, que destacou três figuras
de grandes convertidos: o rei David (da primeira Leitura), o apóstolo Paulo (segunda
Leitura) e o próprio Francisco de Assis.
A propósito do grave pecado de
David (abusando de Betsabeia e mandando matar seu marido Urias), comentou Bento XVI:
O homem é de facto grandeza e miséria: é grandeza porque leva em si a
imagem de Deus e é objecto do seu amor; é miséria porque pode fazer mau uso da liberdade
que é o seu grande privilégio, acabando por colocar-se contra o seu Criador. O veredicto
de Deus, pronunciado por Natan sobre David, ilumina as íntimas fibras da consciência,
ali onde não contam exércitos, o poder, a opinião pública, mas onde uma pessoa se
encontra a sós com Deus. Tu és aquele homem: é palavra que fixa o homem à sua
responsabilidade. Profundamente atingido por esta palavra, o rei chega a um sincero
arrependimento e abre-se à oferta da misericórdia. Eis o caminho da conversão.
Relativamente
a outro grande convertido, o apóstolo Paulo, comentando a passagem da Carta aos Gálatas
que constitui a II Leitura, observou o Papa:
Paulo tinha compreendido que
em Cristo se encontra realizada toda a lei e quem adere a Cristo se une a Ele, cumpre
a lei. Levar Cristo, e com Cristo o único Deus, a todas as gentes tinha-se tornado
a sua missão. Cristo é, de facto, a nossa paz, o que fez dos dois um só povo, abatendo
o muro se separação… A sua pessoalíssima confissão de amor exprime ao mesmo tempo
também a essência comum da vida cristã: Esta vida que vivo na carne, eu a vivo
na fé do Filho de Deus, que me amou e se deu a si mesmo por mim.
Com
a força do seu testemunho – observou depois Bento XVI, Francisco de Assis confia-nos
hoje todas estas palavras de Paulo:
Desde quando o rosto dos leprosos,
amados por amor de Deus, lhe fez intuir, de algum modo, o mistério da kenose,
o abaixamento de Deus na carne do Filho do homem, desde quando a voz do Crucifixo
de São Damião lhe pôs no coração o programa da sua vida: Vai, Francisco, repara
a minha casa, o seu caminho não foi senão o esforço quotidiano de identificar-se
com Cristo. Enamorou-se de Cristo. As chagas do crucificado feriram o seu coração,
antes de assinalarem o seu corpo em La Verna. Ele podia verdadeiramente dizer com
Paulo: Já não sou eu que vivo, è Cristo que vive em mim.
Aludindo
depois ao Evangelho do dia, Bento XVI explicou “o dinamismo da autêntica conversão”,
a partir do encontro daquela mulher pecadora com Jesus, em casa de Simão. Advertindo
que “a misericórdia de Jesus não se exprime pondo entre parêntesis a lei moral”, prosseguiu
o Papa:
Para Jesus, o bem é bem, o mal é mal. A misericórdia não altera
as conotações do pecado, mas queima-o num fogo de amor. Este efeito purificador e
curativo realiza-se no homem se existe uma correspondência de amor, que implica o
reconhecimento da lei de Deus, o arrependimento sincero, o propósito de uma vida nova.
Muito é perdoado à pecadora do Evangelho, porque muito amou. Em Jesus, Deus vem dar-nos
– e pedir-nos – amor.
Aliás, toda a vida de Francisco convertido mais não
foi do que um grande acto de amor – observou o Papa. E é a sua “conversão” a Cristo,
até ao desejo de n’Ele se transformar que explica todo o seu modo de viver,
que faz com que Francisco nos “apareça hoje tão actual, nomeadamente em relação a
grandes temas do nosso tempo, como a busca da paz, a salvaguarda da natureza, a promoção
do diálogo entre todos os homens”.
Francisco é um verdadeiro mestre nestas
coisas. Mas é-o a partir de Cristo. É Cristode facto a nossa paz. É
Cristo o princípio mesmo do cosmos, pois n’Ele tudo foi feito. É Cristo a verdade
divina, o Logos eterno, no qual encontra todo o seu fundamento último todo
o dia-logos no tempo. Francisco encarna profundamente esta verdade cristológica
que está nas raízes da existência humana, do cosmos, da história.
Foi neste
contexto que Bento XVI fez questão de evocar a iniciativa tomada em 1986 por João
Paulo II, ao convocar os representantes das confissões cristãs e das diversas religiões
do mundo para um encontro de oração pela paz, precisamente em Assis. Uma “intuição
profética, um momento de graça” da parte do seu predecessor, considerou Bento XVI.
A
escolha de celebrar o encontro em Assis era sugerida precisamente pelo testemunho
de Francisco como homem de paz, para o qual tantas pessoas dirigem o olhar com simpatia,
mesmo a partir de outras posições culturais e religiosas. Ao mesmo tempo, a luz do
Poverello sobre aquela iniciativa era uma garantia de autenticidade cristã, já que
a sua vida e a sua mensagem se apoiam visivelmente sobre a escolha de Cristo, rejeitando
a priori toda e qualquer tentação de indiferentismo religioso, que nada teria que
ver com o autêntico diálogo inter-religioso. O espírito de Assis, que se
continua a difundir no mundo a partir daquele acontecimento, opõe-se ao espírito de
violência, ao abuso da religião como pretexto para a violência. Assis diz-nos que
a fidelidade à própria convicção religiosa, a fidelidade sobretudo a Cristo crucificado
e ressuscitado não se exprime em violência e intolerância, mas no sincero respeito
pelo outro, no diálogo, num anúncio que faz apelo à liberdade e à razão, no empenho
pela paz e pela reconciliação.
“Não poderia ser atitude evangélica, nem
franciscana – advertiu Bento XVI a concluir – o não conseguir conjugar o acolhimento,
diálogo e respeito por todos – com a certeza da fé que cada cristão, como o fez o
Santo de Assis, tem o dever de cultivar, anunciando Cristo como caminho, verdade e
vida do homem, único Salvador do mundo”.