2007-05-30 15:41:22

Violações dos direitos humanos no Darfur. António Guterres, Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, denuncia a difícil situação na região sudanesa, apesar dos acordos de paz de Abuja


(30/5/2007) António Guterres iniciou funções de Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados em 15 de Junho de 2005. Dirige uma das principais agências humanitárias a nível mundial, que conta mais de 6 mil funcionários presentes em 115 países.
O ex-primeiro ministro de Portugal (1996-2002) aborda, nesta entrevista colectiva às publicações da Missão Press em Portugal, o drama dos refugiados, especialmente os do conflito do Darfur, no Sudão.
Missão Press (MP) - Neste momento quais os pontos negros no que diz respeito á mobilidade forçada no mundo?
António Guterres (AG) - Em primeiro lugar é importante reconhecer que o século XXI vai em grande medida ser marcado pelos movimentos de população. Grande parte desses movimentos de população é motivada por factores de natureza económica. Infelizmente, um número reduzido de oportunidades de imigração legal faz com que prolifere a imigração ilegal, e no quadro da imigração ilegal, se tenham criado condições que favorecem a acção de contrabandistas, traficantes, com crimes hediondos em que identificamos imensa gente sofrendo situações horrorosas.
É também cada vez mais verdade, que face a estes enormes movimentos de população, há um número muito significativo de pessoas que se integram em movimentos mistos mas que têm necessidade de protecção, porque são refugiados, mulheres vítimas de tráfico, crianças não acompanhadas. Por outro lado, há movimentos estritamente determinados por razões estranhas à vontade das pessoas, por razões ambientais em certos casos, e infelizmente por razões ligadas à perseguição e ao conflito.
Nós estamos a assistir neste momento ao agravar de um conjunto de situações de guerra, ou pelo menos de violência, muito significativa, e quando olhamos para um arco que vem do Afeganistão, que passa pelo Iraque e pela Palestina, desce para o Sudão e para a Somália, encontraremos porventura a área do mundo mais preocupante em matéria de deslocamento forçado.
A situação em Darfur
MP- Qual é o ponto da situação no Darfur?
AG - A situação continua extremamente difícil. Como é sabido, continua a haver conflito entre o governo e vários movimentos rebeldes, apesar dos acordos de paz de Abuja [assinados a 5 de Maio de 2006], mas que apenas foram subscritos por um número limitado de actores. Continua a existir uma situação de insegurança generalizada, com violações dramáticas dos direitos humanos para a população em geral, e finalmente um grande esforço de apoio humanitário a essa mesma população(..). No ponto de vista da ajuda humanitária, de manter as pessoas vivas, garantir a alimentação e garantir até, em muitas circunstâncias, o acesso a alguns cuidados de saúde, ou até algum nível de educação. Há um esforço admirável da comunidade internacional, apoiando cerca de 4 milhões de pessoas que beneficiam desta assistência e cuja situação, e neste domínio, tem registado algumas melhorias nestes últimos meses. Mas infelizmente e em contrapartida, do ponto da protecção das pessoas e da insegurança, aí estamos perante um fracasso generalizado e por isso o risco para a segurança destas comunidades, a violação dos direitos das pessoas, casos dramáticos de morte, violação, continuam a proliferar e neste domínio todos temos que reconhecer que não foi ainda possível à comunidade internacional alterar este estado de coisas.
MP - Na conferência que deu há dias na Sé de Lisboa dizia que “a soberania da pessoa, no caso de Darfur, foi sacrificada no altar da soberania do Estado”. O que é que queria dizer com isto?
AG - Nós assistimos nos anos 90 e, lembro-me bem disso, porque nessa altura desempenhava funções oficiais, a uma tendência para nas relações internacionais se estabelecer um equilíbrio entre a soberania do Estado que naturalmente deve ser respeitada e a soberania da pessoa humana. Nós assistimos em Timor Leste, na Bósnia, no Kosovo, a uma intervenção da comunidade internacional feita em nome dos Direitos Humanos, da protecção das pessoas, e foi-se consagrando um princípio de direito de ingerência humanitária. Mais tarde há uma comissão que trabalhou sobre os auspícios do governo Canadiano que produziu um relatório muito interessante que define um novo conceito da responsabilidade de proteger, considerando que é atributo do Estado e da soberania do Estado a responsabilidade de proteger os seus próprios cidadãos. Mas quando o Estado não é capaz ou não o quer fazer, sobra um domínio de responsabilidade para a comunidade internacional. Este principio foi acolhido pela Assembleia Geral das Nações Unidas, mas a sua concretização não tem tradução prática. E de alguma forma nós assistimos, porventura de maneira mais agravada após a invasão do Iraque, a uma resistência de muitos países do mundo em desenvolvimento à afirmação deste princípio da responsabilidade de proteger com o argumento que ele pode esconder, por parte das grandes potências, agendas escondidas, desejos de hegemonia, desejo de intervenção com outras finalidades. E isso levou a uma reafirmação da soberania dos Estados. A verdade é que no caso de Darfur essa afirmação se faz em detrimento dos direitos da soberania da pessoa humana, e a comunidade internacional, na prática, tem sido incapaz nos últimos anos de criar as condições para que possam ser efectivamente protegidos os direitos das populações.
A ajuda humanitária
MP - As associações humanitárias têm podido desenvolver a sua missão no Darfur?
AG - Têm e é de facto um êxito extraordinário. Há milhares de trabalhadores humanitários das mais diversas associações, nomeadamente muitas organizações ligadas à Igreja, há milhares de trabalhadores humanitários, os nossos próprios estão aí envolvidos, com enormes riscos. Nós tivemos, há duas semanas, seis dos nossos colaboradores raptados no sul, felizmente sem consequências, apesar das suas viaturas terem sido roubadas, mas tem havido gente que morre, que sofre outras formas de ataque, mas que têm conseguido manter um apoio humanitário notável às populações. Como disse há pouco, 4 milhões de pessoas são alimentadas por dinheiro internacional, serviços de prestações de saúde estão espalhados por todo o território, em condições de extrema dificuldade mas com grande abnegação, há muitas escolas abertas no Darfur, em muitos destes campos de pessoas deslocadas as crianças têm, apesar de tudo, por vezes mais oportunidades do que tinham nas suas aldeias originárias, e isso revela de facto, um extraordinário êxito da acção humanitária da comunidade internacional. Infelizmente, esse êxito deve ser posto em paralelo com o fracasso da capacidade de dar às populações segurança e protecção.
MP - Se não se encontrar uma solução política e social é sustentável a presença das organizações humanitárias?
AG - O nosso dever é continuar, é continuar até ao limite das nossas possibilidades. Infelizmente não é esta a única crise que perdura, nós temos refugiados palestinianos desde 1948, temos na Tanzânia refugiados do Burundi desde 1972, temos em Tindouf [na Argélia] os Sarauis que estão há décadas e décadas. Há inclusive muitas situações destas que se arrastam e é nosso dever mobilizar os esforços da comunidade internacional para apoiar estas populações que já sofrem tanto. Agora, espero que seja possível ultrapassar o impasse presente e nomeadamente que os esforços de mediação que estão no terreno, da Líbia, Eritreia, e agora de uma forma sistemática das Nações Unidas e da União Africana, em conjunto, possam conduzir a que um acordo de paz efectivo seja estabelecido abrangendo todos os actores no terreno, como condição essencial para que a segurança seja estabelecida e para se restabelecer um equilíbrio entre os diversos grupos e das diversas tribos no Darfur que foi rompido. No Darfur nós temos o que alguns chamam árabes e africanos, ou nómadas e sedentários, ou agricultores e pastores. O que é verdade é que estas comunidades viveram durante séculos em harmonia, mas é também verdade quando os recursos diminuem, nomeadamente quando a água diminui, e porventura aqui as alterações climáticas virão a ser um factor agravante deste problema, há uma tendência para o conflito. É evidente que quando essa tendência é manipulada politicamente pode conduzir aquilo a que nós podemos assistir, a Janjauid armados, e que simultaneamente conduziam, em vez do exército, o confronto com movimentos rebeldes, e atacavam aldeias de populações agrícolas para poderem aproveitar os recursos nomeadamente o acesso aos pontos de água relevantes. Uma vez estabelecida a paz será possível reencontrar condições e um grande esforço terá que ser feito, quer do ponto de vista do diálogo social, quer eventualmente do ponto de vista económico. Para se solucionar materialmente algumas das dificuldades existentes e uma vez estabelecida a paz, um grande esforço terá que ser promovido para restabelecer o equilíbrio entre as diversas comunidades. A complexidade da situação exige várias respostas, agora nenhuma dessas respostas é possível num clima de confronto.
MP - O que sentiu quando visitou o Darfur?
AG - Penso que o que marca mais são os testemunhos que nós recebemos daquela população, do medo, da insegurança. Falar com mulheres que têm que ir apanhar lenha porque têm que cozinhar para as suas famílias, que ao fazê-lo estão sujeitas a serem raptadas, violadas; falar com jovens que têm visto amigos seus serem mortos, ou serem mobilizados à força para diversas milícias. Esses testemunhos são profundamente marcantes e comoventes e de alguma forma conduzem a uma certa frustração e incapacidade de dar respostas a esses problemas.
O papel das religiões
MP - Como vê a intervenção da Igreja Católica, das outras Igrejas e doutras religiões neste tipo de situações onde se joga o limite da condição humana?
AG - Acho que é essencial. Nós temos várias organizações ligadas à Igreja que são nossas parceiras no terreno de forma extremamente generosa, dedicada e depois vivemos num mundo em que a intolerância se tem afirmado, em que o confronto entre culturas, civilizações se arrisca a desenvolver-se e creio que a postura do diálogo, e tolerância da Igreja é absolutamente essencial neste domínio. Recordo-me nomeadamente das inúmeras intervenções do Papa João Paulo II em relação à questão Palestiniana, à questão do diálogo com o mundo muçulmano, em relação ao próprio Iraque que foram um factor muito importante de atenuação de tensões internacionais. E isso é essencial para que não se produzam situações como aquelas do deslocamento forçado, movimento forçado de populações e que afectam directamente aqueles que estão sob o mandato que me foi conferido.
MP - Vê o futuro com um olhar positivo?
AG - Eu acho que temos que ver sempre o futuro com um olhar positivo, no sentido que temos que nos empenhar. Há uma frase que um costumo citar que é de Jean Monnet em que ele diz que não é optimista nem pessimista: é determinado! E essa é que é a questão. O optimismo pode ser uma atitude pouco inteligente se nos levar a estar parados em vez de contribuir para a solução dos problemas. Se o pessimismo também nos levar ao desânimo, também não creio que seja uma forma inteligente de estar na vida. Temos que reconhecer a enorme complexidade dos problemas mas achar que as coisas são para nós um desafio. E são um apelo, de alguma forma um sinal que recebemos de Deus para que nos empenhemos. Se os problemas não existissem, porventura o empenhamento não seria necessário. Os talentos não fariam falta. Como os problemas são muitos nós não temos o direito de ficar com os talentos enterrados. Temos mesmo que os pôr a render.
A cimeira Europa-África
MP - Na agenda duma cimeira Europa-África, o Darfur poderá ter um lugar? E o que é que eventualmente se pode fazer para levar o governo português a “impor” esse ponto da agenda?
AG - Eu penso que porventura não será no quadro de uma cimeira destas que o problema encontrará solução. Uma cimeira dessas pode ajudar, mas não será aí seguramente que o essencial do esforço para resolver as contradições existentes, terá que ser realizado. A cimeira pode ser um factor que contribua para atenuar tensões e para facilitar contactos, mas é bom não esquecer que entre os próprios países africanos há grandes tensões, por exemplo, entre Chade e o Sudão têm existido tradicionalmente situações de grande tensão. E há rebeldes Chadianos que estão no Darfur e há rebeldes do Darfur que estão no território do Chade. E isto naturalmente cria um relacionamento complexo entre os países. Agora, o que me parece indiscutível é que o grande esforço da comunidade internacional, no presente momento tem que ser de pressão sobre todas as partes, sobre o governo, sobres os vários movimentos rebeldes, para que rapidamente cheguem a um acordo de paz. E é esse clima que eu espero que uma cimeira como esta possa ajudar a criar.
Não deixa de ser curioso que tenha havido até agora uma única cimeira Euro Africana, e que essa cimeira tenha ocorrido durante a presidência portuguesa da União Europeia. E eu recordo-me quão difícil foi, lembro-me de debates parlamentares em que diziam, ridicularizando o governo, que a cimeira não podia ser realizada, foi muito difícil, finalmente conseguiu-se. E agora é de novo uma presidência portuguesa que está a fazer todos os esforços para uma nova cimeira Europa –África. E entretanto nada aconteceu. O que é também revelador de que a Europa como tal não tem querido assumir as suas responsabilidades em relação ao continente africano. O continente africano é um continente vítima das mais diversas circunstâncias, desde logo dos efeitos do próprio colonialismo, depois de ter sido um continente palco da guerra fria, enquanto as grandes potências se degladiavam, nós próprios somos testemunhas de quanto isto foi evidente. E depois todo um conjunto de factores, de tensão interna, de dificuldades de estabelecer o chamado “bom governo”. É um continente que em grande medida tem passado à margem da globalização, do progresso social, económico, tecnológico. E é um continente que exige um apoio maciço, um investimento maciço e uma compreensão maciça dos seus problemas. A Europa tem aí uma responsabilidade evidente, pela história e pela solidariedade que deve existir em qualquer caso. E a verdade é que a Europa enquanto tal, independentemente dos esforços individuais, foi até agora incapaz de ter uma verdadeira estratégia para África e um verdadeiro empenhamento para ajudar os africanos a ultrapassar as gravíssimas dificuldades que eles têm.
Missão Press - Associação de Imprensa Missionária









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