Desenvolvimento e pobreza em debate na Sé Catedral de Lisboa
(11/5/2007) Numa noite que juntou na Sé Patriarcal de Lisboa António Guterres, Isabel
Jonet e José Luís Ramos Pinheiro, os argumentos centraram-se na atenção aos mais desfavorecidos.
A segunda conferência do programa «Ecce Homo», uma iniciativa do Departamento
da Comunicação e da Cultura do Patriarcado de Lisboa, para assinalar os 40 anos da
Encíclica Populorum Progressio, teve como tema central o «Bem». Isabel Jonet,
Presidente da Federação dos Bancos Alimentares, ao assinalar o aumento de pobres,
“não só nos países em vias de desenvolvimento mas também nos países desenvolvidos”,
propôs o exercício da caridade em vez da solidariedade “Entendo que caridade é
a solidariedade com amor pelo o outro, no exercício do bem, de forma desinteressada”,
acrescentou. Sendo um caminho difícil “são visíveis alguns sinais de esperança”, caso
da aceitação dos princípios sociais propostos pela Igreja, ou do facto de muitos países
terem já reconhecido o direito de não ser pobre, como um dos direitos humanos. “A
cidadania activa cresce em substituição da lógica da ajuda”. As Nações Unidas
inscreveram no seu programa no período de 1997 a 2006, a década para a erradicação
da pobreza. “Não é possível saber se algum dia terão definitivamente erradicado as
situações de pobreza, mas cada um de nós deve procurar, nos locais onde está inserido,
fazer todos os esforços para pelo menos minorar os seus efeitos”, indicou a Presidente
da Federação dos Bancos Alimentares. Portugal é um dos países da Europa com maior
taxa de pobreza. Cerca de 20% da população é pobre - 2 milhões de pessoas. “200 mil
pessoas têm apenas uma refeição por dia, 35 mil não têm nenhuma”, indicou, acrescentando
ainda que “uma sociedade que desperdiça muitas das suas riquezas e dos seus valores
nos faz esquecer a importância de cada um e a forma como deve ser optimizado o bem
comum”. “Ao desperdiçar um bem alimentar em bom estado, fazendo ele falta a algum
ser humano, cometemos uma injustiça”. Isabel Jonet considerou que a manutenção
da pobreza persiste devido à “perda de valores que prolifera nas sociedades actuais.
O individualismo impede o reconhecimento do valor dos mais fracos e as medidas sociais
não terão qualquer resultado na erradicação da pobreza enquanto o homem não for o
valor de referência do progresso económico”. Recordando o exemplo do Banco Alimentar
contra a fome, sublinhou o contributo de empresários e empresas preocupados com o
bem comum, com a justiça social ao incorporam a responsabilidade social nas suas decisões.
“O acompanhamento das situações e uma acção eficaz para lhes dar solução exige proximidade,
afecto e calor humano. A acção do banco alimentar reside na dádiva, na partilha, no
voluntariado”, lembrou. A Encíclica Populorum Progressio foi caracterizada por
António Guterres como a encíclica do desenvolvimento mas não apenas do desenvolvimento
económico mas “do integral da pessoa humana, indicando o desenvolvimento como um novo
nome da paz”. O Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados apontou que este
quadro só será real “se for assente na justiça, entre as pessoas, entre os estados,
e agora, 40 anos depois, cada vez mais, entre as gerações”. Uma paz que vá para
além da justiça e do desenvolvimento “exige a tolerância, não no sentido da indiferença,
mas no sentido de uma ante câmara de algo mais avançado, o amor”. Paz sem desenvolvimento
justo, “será sempre uma paz precária” e a noção de bem que da Encíclica assenta “nos
dois pilares do desenvolvimento como a justiça e a paz com tolerância”, acrescentou.
António Guterres reflectiu no optimismo que se viveu nos últimos 20 anos “onde
se assistiu a uma evolução da sensibilidade”. Numa primeira fase, assistia-se à convicção
de que a globalização se tornaria num factor não apenas de crescimento económico mas
também de acesso de todos aos bens do progresso e da civilização. Proliferava a ideia
de que a “evolução tecnológica permitiria dar a resposta a muitos dos problemas com
que a sociedade se foi confrontando, nomeadamente de natureza ambiental e de solidariedade
entre as gerações”. O optimismo que verificava, no quadro internacional, uma crescente
consciência de que para além da soberania dos Estados, deveria ter-se em conta a soberania
da pessoa humana, “o direito de ingerência humanitário tendo este servido de base
a intervenções da comunidade internacional como no Kosovo, na Bósnia, ou a de Timor
Leste”. O Alto-comissário das Nações Unidas para os Refugiados recordou a ideia
de que “os Estados não se podiam sobrepor às pessoas e que as pessoas mereciam uma
intervenção a seu favor face ao arbítrio e à opressão dos próprios Estados”. “Quando
o Estado não é capaz ou não quer, faz derivar para a comunidade internacional essa
mesma responsabilidade de proteger, que nos levou a mobilizar a intervenção em Timor
Leste e que era um novo factor extremamente importante de humanização das relações
internacionais”, recordou. Este optimismo que, inclusivamente António Guterres
reconheceu partilhar na sua vida política nos anos 90, “acabou por dar origem a uma
certa «ressaca», no início do milénio, sobretudo após o 11 de Setembro”. “A globalização
foi cada vez mais um factor de acentuar um fosso entre ricos e pobres, à escala de
um país e também entre países à escala mundial”. Segundo os últimos relatórios do
Banco Mundial, o número total de pessoas em pobreza absoluta - pessoas que vivem com
menos de 1 dólar por dia - está a ser reduzido hoje em grande medida por causa do
êxito dos processos de desenvolvimento. “Mas este é um mero factor estatístico,
pois se formos ao Continente Africano, é cada vez mais terrível a situação de uma
larguíssima percentagem da população”, sublinhou António Guterres. Um mundo crescentemente
injusto “que percebemos na primeira década do milénio”. O sentimento de intolerância
cresce, a justiça não progride, assistimos também à subjugação da pessoa humana “face
à soberania dos Estados, sendo o Darfur o exemplo mais flagrante no nosso tempo presente”,
indicou António Guterres. “Na necessidade de pôr fim a este desnível de partilha
da riqueza, de restaurar um clima de diálogo nas civilizações, de diálogo entre as
comunidades e também de reafirmar a soberania da pessoa humana e dos seus direitos,
creio que surgem muitas interpelações”. Não é altura para pessimismos, mas “para
estarmos determinados”, sendo que a acção de vários cidadãos “é de sublinhar”. “Bons
exemplos que me fazem ter esperança nos valores da Encíclica e acreditar que esses
valores poderão triunfar”. A conferência terminou com um apontamento do Cardeal
Patriarca de Lisboa afirmando que “é extremamente importante identificar o problema
humana aqui descrito e os meios para lhes responder e bem administrar”. D. José
Policarpo apontou como missão da Igreja cultivar “o espírito com que o bem deve ser
praticado”, e este deve ser com o espírito da “bondade. Todos os projectos ganham
muito se forem realizados por homens e mulheres bons”. E terminou afirmando que quando
“somos bons para os outros, somos nós próprios que nos transcendemos, e vemos para
além da aparência do pobre”. A última conferência do programa «Ecce Homo» tem
encontro marcado para o noite de 24 de Maio.