O sofrimento do inocente na homilia do Patriarca de Lisboa na celebração de adoração
da Cruz
(7/4/2007) Contemplamos, hoje, o acontecimento decisivo da história da humanidade,
fundador da nossa identidade cristã: a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo na Cruz,
máxima expressão do sofrimento inocente, fonte de sentido para todo o sofrimento humano.
Inocente é aquele que não tem culpa, que não merece o sofrimento que lhe é infligido
e que, por isso, é injusto. O sentido do sofrimento do justo é o problema que maiores
interrogações gera nos crentes de Israel, para quem a única razão compreensível para
o sofrimento era o ele ser um castigo pela infidelidade e pelo pecado. Como exclama
o nosso poeta, “que quem é pecador sofra tormentos, enfim!... Mas as crianças, Senhor?”,
mas o justo, Senhor, diria um crente de Israel. Foram-se procurando explicações: que
os filhos pagariam pelos pecados de seus pais; o sofrimento sem causa aparente revela
que há pecados ocultos que ninguém conhece. Só Deus conhece o coração do justo, daquele
que é verdadeiramente inocente e na sua provação só lhe resta abandonar-se na confiança,
atitude cantada pelo salmista: “Os justos clamaram e o Senhor os ouviu,… muitas são
as tribulações do justo, mas de todas o livra o Senhor (Sl. 33,18;20). O próprio autor
da Carta aos Hebreus aplica a Cristo, no Seu sofrimento injusto, este abandono na
confiança: “Nos dias da Sua vida mortal, Cristo dirigiu preces e súplicas, com um
forte brado e com lágrimas, Àquele que o podia livrar da morte e, por causa da Sua
piedade, foi atendido” (He. 5,7). Este abandono confiante do justo sofredor nas
mãos de Deus aponta já para onde se encontra o sentido do sofrimento inocente, que
só Deus pode conhecer. Mas está-se ainda longe da fecundidade salvífica do sofrimento
do justo, que se nos manifestará na Cruz de Cristo, em Quem o sofrimento aparece como
um acto de louvor a Deus, expressão máxima da caridade, onde se purificam os corações
marcados pelo pecado. Que o justo reúne na sua fidelidade o destino de todo o povo,
já aparecera como dimensão que se foi acentuando; mas que o sofrimento inocente do
justo fosse o elemento decisivo dessa fecundidade colectiva, só é atribuído ao Messias
esperado, descrito na figura do Servo sofredor e obediente. 2. Aqui tocamos no
aspecto essencial do sofrimento inocente: só o justo, no seu coração puro é capaz
de oferecer o sofrimento como acto de louvor, sofrimento do homem, que se aproxima
do sofrimento de Deus. É quando o sofrimento se torna louvor que ele é fecundo e redentor.
O sofrimento é uma realidade permanente na experiência humana, que não atinge a sua
expressão fecunda devido à impureza do coração humano, incapaz de o aceitar e oferecer.
O pecado torna estéril o sofrimento. A realidade do pecado sublinha a actualidade
da Cruz de Cristo. Nós precisamos, para a nossa redenção, que Cristo continue a oferecer-Se
a Deus por nós. Só Cristo é verdadeiramente inocente e, por isso, só o Seu sofrimento
é redentor. Mas purificados no Seu sangue e unidos a Ele no baptismo, podemos sofrer
n’Ele e com Ele, que faz suas as nossas dores e as oferece ao Pai, em acto de louvor.
Em Cristo a nossa dor ganha a densidade do sofrimento inocente, naquela pureza reconstruída
pela acção do Espírito que Ele infunde em nós. É nesse sentido que São Paulo diz que
nós sentimos, na nossa carne, o que falta aos sofrimentos de Cristo. A reconstrução
da inocência, pelo perdão dos pecados, tem em nós, como primeiro fruto maravilhoso,
o podermos viver, com sentido redentor, o nosso sofrimento, o que significa poder
celebrar a Eucaristia, isto é, oferecer com Cristo o nosso sofrimento no mesmo acto
de louvor em que Ele oferece o seu. 3. Transformado em acto de louvor, o sofrimento
inocente reveste-se de características, que Jesus referiu ao enunciar os bem-aventurados,
aqueles que vivem ao ritmo do Reino dos Céus: “Bem-aventurados os que sofrem, porque
serão consolados” (Mt. 5,5). O sofrimento oferecido gera a sua própria consolação.
A primeira qualidade deste sofrimento inocente dos bem-aventurados, é a mansidão.
O justo que sofre não se revolta, não acusa, nem Deus, nem os homens, não desespera.
O Profeta Isaías já sublinhara essa atitude no sofrimento do Servo: “Maltratado, resignava-se
e não abria a boca. Como o cordeiro levado ao matadouro e a ovelha sem voz ante aqueles
que a tosquiam, nem sequer abriu a boca” (Is. 53,7). Esta mansidão sobressai no Senhor
Jesus como obediência filial: “Apesar de ser Filho, aprendeu, de quanto sofrera, o
que é obedecer” (Heb. 5,8). A mansidão tem n’Ele uma origem, a fidelidade à vontade
do Pai, o que nos anuncia o desígnio insondável de Deus de salvar a humanidade através
do sofrimento inocente. Esta obediência filial há-de transformar-se, em nós, seus
discípulos, em identificação com a sua missão, aceitando sofrer com Ele e como Ele
sofre: “Quando atingir a Sua plenitude, tornou-se, para todos aqueles que Lhe obedecem,
causa de salvação eterna” (Heb. 5,9). 4. O sofrimento do justo, oferecido como
acto de louvor, é a mais bela expressão da caridade e tem a grandeza e a dignidade
da liberdade. Jesus mostrou-o bem, na sua Paixão, perante o Sumo Sacerdote, perante
o Governador Romano, perante os soldados que O procuram no Jardim das Oliveiras e
depois executam a sentença. Que paz, repassada de amor, transpareceu na resposta ao
“bom ladrão”, “hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc. 23,43), ou quando diz a
Sua Mãe, “eis o teu filho” (Jo. 19,26). Tantas vezes, na Igreja, identificamos esta
grandeza no sofrimento dos cristãos, na liberdade serena dos mártires, na aceitação
silenciosa da dor, na aceitação da morte como um momento de libertação. Em todo o
sofrimento oferecido, com a mansidão do Servo, Deus é louvado e aprofunda-se, misteriosamente,
a redenção do mundo. Há um ano, disse-vos aqui, neste mesmo dia: “Só Deus conhece
a força redentora do sofrimento oferecido, em união aos sofrimentos de Nosso Senhor
Jesus Cristo”. 5. O sofrimento inocente abre o coração do justo para a universalidade
do amor salvífico de Deus. Na vida normal é comum, mesmo nas pessoas piedosas, rezarmos
por este, intercedermos por aquele. Quando o crente, com o coração purificado, fazendo
um com Cristo, se abandona ao sofrimento aceite e oferecido, abre-se à universalidade
da salvação, participa dos sentimentos de Jesus na Cruz, o Qual, de braços abertos,
abraça a humanidade de todos os tempos. Esse é sempre o horizonte da Igreja, sobretudo
quando celebra a Eucaristia e que hoje, nesta celebração, se exprime na oração por
todos os homens, cristãos e não cristãos, crentes e descrentes, actores de um drama
cuja amplitude desconhecem e que encontra na Cruz de Cristo a chave da sua compreensão.
Nesta universalidade da nossa oração, não podemos deixar de dar um lugar especial
a essas multidões imensas que, neste momento, sofrem a violência, a injustiça, a dor
física ou a solidão espiritual: os culpados e os inocentes, sobretudo as crianças,
mortas, abusadas, exploradas, agredidas na sua inocência. Ofereçamos nós, porque o
podemos fazer, em Cristo, todo esse sofrimento; aprendamos com Ele a sofrer; ajudemos
os outros a oferecer a sua dor. E ao adorarmos a Cruz do Senhor, abracemos nela todo
o sofrimento do mundo.