A paz, a crise da família, sacerdócio e celibato, o diálogo ecuménico e o diálogo
inter-religioso: estes os temas abordados por Bento XVI, na troca de Boas Festas com
a Cúria Romana
( 22/12/2006) Passando em resenha alguns dos principais acontecimentos do ano de
2006, na sua actividade de sucessor de Pedro, o Papa comentou e enquadrou diferentes
questões que emergiram nas diversas circunstâncias, nomeadamente nas viagens empreendidas,
que tiveram como tema geral – sublinhou – a relação entre o céu e a terra, entre paz
na terra e reconciliação com Deus.
Antes de mais, a visita pastoral à Polónia,
terra natal do “amado Papa João Paulo II”. Bento XVI exaltou a “fé inabalável e o
radicalismo da dedicação” do seu predecessor, como “o seu maior dom a todos nós”.
“Ele deu-se sem reservas a Deus, a Cristo, à Mãe de Cristo, à Igreja: ao serviço do
Redentor e à redenção do homem. Não reservou nada, deixou-se consumar até ao fim pela
chama da fé. Mostrou-nos assim como é que, como homens deste nosso tempo, se pode
crer em Deus, no Deus vivo… Mostrou-nos que é possível uma entrega definitiva e radical
de toda a vida e que é precisamente no doar-se que a vida se torna grande e vasta
e fecunda”. Daqui, uma breve reflexão sobre o ministério petrino, que se baseia
na promessa feita por Jesus a Pedro, em Cesareia de Filipe: “Tu és Pedro e sobre esta
pedra edificarei a minha igreja”. “Em si, Pedro não era uma rocha, era um homem débil
e inconstante. Mas o Senhor quer fazer precisamente dele a pedra, demonstrando que
, através dum homem débil, Ele mantém de modo seguro a sua Igreja assegurando a sua
unidade”.
Aludindo à visita realizada ao campo de concentração de Auschwitz,
“lugar da mais cruel barbárie, da tentativa de cancelar o povo de Israel, e de vanificar
assim a eleição da parte de Deus, tentativa de excluir da história o próprio Deus”,
observou o Papa:. “Foi para mim motivo de grande conforto ver comparecer no céu
o arco-íris, quando eu, perante o horror daquele lugar, na atitude de Job, gritava
para Deus, abalado pelo terror da sua aparente ausência, e ao mesmo tempo amparado
pela certeza de que, mesmo no seu silêncio, Ele não deixa de estar connosco. O arco-íris
era como uma resposta”.
A propósito da visita a Valência, para o Encontro
Mundial das Famílias, o Papa referiu-se ao tema do matrimónio e da família, congratulando-se
com os testemunhos de casais que vivem – não obstante todas as crises e dificuldades
– a fidelidade ao sim inicial: “o sim que se deram reciprocamente, na paciência do
caminho e na força do sacramento com que Cristo os ligou conjuntamente” e que “se
tornou num grande sim perante eles mesmos, os filhos, Deus Criador e Jesus Cristo
Redentor”. “Assim, do testemunho destas famílias chegava até nós uma onda de alegria,
não de um entusiasmo superficial e mesquinho que depressa desvanece, mas de uma alegria
maturada também no sofrimento, de uma alegria profunda, que redime verdadeiramente
o homem”. Foi neste contexto que, verificando que a Europa parece não querer ter
mais filhos, “o problema da Europa penetrou na minha alma” - confessou Bento XVI.
Esta Europa parece cansada, parece querer despedir-se da história”. Porquê? – perguntou-se.
Reconhecendo que as respostas são complexas, o Papa adiantou uma delas: “já não temos
a certeza de quais são as normas a transmitir; já não sabemos qual é o uso justo da
liberdade, qual é o modo justo de viver, que coisa se impõe moralmente, e que coisa
é inadmissível.” “O espírito moderno perdeu a orientação, e esta falta de orientação
não nos permite ser - para outros – indicadores do recto caminho. Mais ainda: a problemática
vai mais longe. O homem de hoje é inseguro sobre o futuro… Em última análise, é coisa
boa ser homem?”
Neste contexto, o Santo Padre declarou não poder calar
a sua “preocupação” perante “novas formas jurídicas que relativizam o matrimónio”,
em que “a renúncia ao elo definitivo obtém até, por assim dizer, uma confirmação jurídica”.
A isto se soma também o caso de “outras formas de casais” em que se verifica “a relativização
da diferença dos sexos”. “Confirmam-se assim tacitamente aquelas funestas teorias
que retiram qualquer relevância à masculinidade e à feminilidade da pessoa humana,
como se se tratasse de um facto meramente biológico; teorias segundo as quais o homem
– a sua inteligência e a sua vontade – decidiria autonomamente o que é e o que não
é. Há aqui um desprezo da corporeidade… em que o homem acaba por se destruir a si
próprio” – advertiu o Papa.
Passando à viagem à Alemanha, Bento XVI recordou
que esta tinha como tema “Deus”, observando: “A Igreja deve falar de tantas coisas…Mas
o seu verdadeiro tema e – sob certos aspectos – o único tema é “Deus”. “O grande
problema do Ocidente é o esquecimento de Deus: um esquecimento que se difunde. Em
última análise, todos os problemas e cada um deles se podem reconduzir a esta questão”.
Com o tema de Deus, se relacionam os temas do sacerdócio e do diálogo
– observou Bento XVI. O padre é – como o bispo – “homem de Deus”. É tarefa central
do sacerdote levar Deus aos homens. E é claro que só o pode fazer se ele próprio vem
de Deus, vive com Deus, vive de Deus”. “O verdadeiro fundamento da vida do padre,
o solo da sua existência, a terra da sua vida, é o próprio Deus”. “Esta teocentricidade
da existência sacerdotal – observou ainda o Papa – é necessária precisamente no nosso
mundo tão “funcionalista”, em que tudo assenta em serviços calculáveis e verificáveis.
O padre deve conhecer verdadeiramente a Deus a partir de dentro e levá-lo assim aos
homens: é este o serviço prioritário de que tem necessidade a humanidade de hoje.”
Neste
contexto, Bento XVI referiu “o celibato, que vigora para os Bispos em toda a Igreja
oriental e ocidental e, segundo uma tradição que remonta a uma época próxima da dos
Apóstolos, para os padres em geral, na Igreja latina”. Sobre esta questão – lembrou
o Papa – não bastam as razões meramente pragmáticas”. “O verdadeiro fundamento do
celibato… so pode ser teocêntrico. Não pode significar o ficar privados de amor, mas
deve significar o deixar-se tomar pela paixão por Deus… O celibato deve ser um testemunho
de fé. Apoiar a vida sobre Ele, renunciando ao matrimónio e à família, significa que
eu acolho e experimento Deus como realidade e posso, portanto, levá-lo aos homens”.
O mundo de hoje “tem necessidade do testemunho por Deus que está contido na decisão
de acolher Deus como a terra em que se apoia a própria existência”.
Finalmente,
ainda no contexto da viagem à Alemanha, nomeadamente a Regensburg (e depois à Turquia),
Bento XVI referiu o tema do diálogo, nomeadamente ao diálogo entre fé e razão – um
diálogo cuja urgência se revela cada vez mais imperiosa – advertiu. “A razão tem
necessidade do Logos que está no início e é a nossa luz; a fé, por sua vez, tem necessidade
do colóquios com a razão moderna, para se dar conta da sua grandeza e corresponder
às suas responsabilidades”. Foi isso que tentei evidenciar na minha conferência
em Regensburg – observou Bento XVI. “È uma questão que não é de modo algum de natureza
meramente académica; trata-se do futuro de todos nós”.
Em Regensburg –
fez notar o Papa – só marginalmente é que foi tocado o diálogo entre as religiões.
E isso sob um duplo ponto de vista. Antes de mais o facto de que a razão secularizada
não está em condições de entrar num verdadeiro diálogo com as religiões. Se permanece
fechada perante a questão de Deus, isso acabará por conduzir ao conflito das culturas.
O outro aspecto era a afirmação de que as religiões se devem encontrar na tarefa comum
de colocar-se ao serviço da verdade e portanto do homem. “A visita à Turquia ofereceu-me
a ocasião de ilustrar publicamente o meu respeito pela Religião islâmica, um respeito
aliás já indicado pelo Concílio Vaticano II como um dever que se impõe”. “Num
diálogo a intensificar com o Islão deveremos ter presente o facto de que o mundo muçulmano
se encontra hoje em dia com grande urgência perante uma tarefa muito parecida com
a que se impôs aos cristãos a partir do Iluminismo e que o Concílio Vaticano II, como
fruto de uma longa e árdua busca, levou a soluções concretas para a Igreja católica. “Por
um lado, é necessário contrapor-se a uma ditadura da razão positivista que exclui
Deus da vida da comunidade e dos ordenamentos públicos… Mas por outro lado, é necessário
acolher as verdadeiras conquistas do Iluminismo – os direitos do homem e especialmente
a liberdade da fé e do seu exercício”… “Nós, cristãos, sentimo-nos solidários
com todos os que, precisamente em razão das suas convicções religiosas de muçulmanos,
se empenham contra a violência e a favor da sinergia entre fé e razão, entre religião
e liberdade”.