A Beata Rita de Jesus, uma expressão da vida, cultura, laboriosidade e religiosidade
da gente portuguesa, salientou o Card. D. José Saraiva Martins na homilia da Missa
de beatificação este domingo em Viseu.
1. Num antigo hino a Nossa Senhora, muito conhecido e ainda hoje cantado pela nossa
gente, diz-se: “No Céu a irei ver; no Céu, que feliz dia!”: felicidade, porque
o Céu é a nossa Pátria. Sabemos de facto que, como diz a carta aos Hebreus: “não
temos aqui morada permanente, mas caminhamos rumo à futura” (Heb 13,14).
São Paulo insiste que “a nossa Pátria é nos Céus…” (Fil 3, 20). O
caminho do homem não é um vaguear sem meta na terra. Ao contrário, temos um grande
horizonte e um alto destino, para onde nos encaminhamos e, como filhos de Deus, baptizados,
nunca devemos perder de vista esta dimensão sobrenatural da vida cristã. A Ascensão
do Senhor recorda-nos que “somos chamados a olhar para o alto”; que não tudo
se reduz a esta terra, nem tudo acaba nela. É providencial lembrar tudo isto, porque
hoje – já dizia o grande escritor francês Carlos Péguy – “Hoje, infelizmente está
a espalhar-se uma verdadeira amnésia da eternidade”. Falando da primeira aparicção
de Nossa Senhora aos três pastorinhos na Cova da Iria, a Irmã Lúcia disse que, quebrado
o gelo do medo inicial depois de a Branca Senhora ter dito “Não tenhais medo; não
vos faço mal”, fora ela própria, encorajada pela confiança que a Senhora inspirava,
a perguntar-lhe: “Donde sois”. E que ela respondeu: “Sou do Céu”. O
olhar, com que hoje contemplamos a nova Beata, Rita Lopes de Almeida, certamente dirige-se
ao Céu, na glória e na beatitude com que o Esposo Celeste a reveste e cumula.
2.
Os factos relatados na primeira Leitura, tirada dos Actos dos Apóstolos, podem resumir-se
em dois: o primeiro, virado para o passado, recorda a traição de Judas; o segundo,
virado para o futuro, recompõe o grupo dos doze, que gradualmente se vão convertendo
e abrindo ao apostolado universal, a partir sobretudo das iniciativas de Barnabé,
Paulo e Filipe. Esta conversão dos apóstolos, que lhes foi imposta pelos acontecimentos,
deve ser também a conversão de todos nós. São também esses os temas da segunda
Leitura e do Evangelho, apenas proclamados. Quando conhecemos do amor redentor de
Deus para connosco, ou seja a fé, leva-nos a amar-nos uns aos outros. A fé é, portanto,
a base do nosso comportamento individual e social, isto é, da nossa moral. É por isso
que a vida cristã tem uma dupla dimensão: vertical e horizontal. A primeira leva-nos
a tomar consciência do facto que Deus é Amor, que nos amou de verdade, a ponto de
enviar-nos o seu Filho e querer estabelecer em nós a sua morada. A segunda leva-nos
a amar todos os nossos irmãos, próximos e distantes, com o memso amor com que somos
amados por Deus. Mais ainda: só amando os irmãos, podemos ser amados por esse Deus,
que, fazendo-Se homem, consagrou o humano e que, atavés deste e neste, nos atinge
e nos salva. Mas esta nossa abertura aos outros e ao mundo, este zelo apostólico de
abarcar tudo e todos, não deve correr o risco de empobrecer a nossa vida de comunhão
com Deus.
3. Na linda figura da Beata Rita, aparece claramente que o ser consagrados
na verdade implica a união da fidelidade ao homem com a da fidelidade a Deus, sem
subterfúgios. Só mantendo-nos fiéis a Deus e conservando zelosamente em nós a sua
presença, poderemos realizar com fruto a nossa acção apostólica. É precisamente isso
que a Beata Rita, aliás como todos os santos, dizia: “O que sempre desejei foi
que se faça a vontade de Deus Nosso Senhor”. Como noutra ocasião confidenciou:
“Senti tanto fervor que era capaz de dar a volta ao mundo para a conversão de uma
só alma”. A nova Beata encontrou-se a trabalhar num momento muito difícil,
devido à situação da Europa e à conjuntura interna de Portugal, quando também entre
nós a Igreja escreveu páginas de martírio e deu ao mundo insignes testemunhos de altíssimo
valor antropológico e religioso. Madre Rita é uma dessas expressões da vida, cultura,
laboriosidade e religiosidade da gente portuguesa. Esta peculiaridade sobressaiu
nela, quando, ainda muito nova, intuiu, como poucos, o problema da Educação, sofrendo
com a falta de uma escola em Ribafeita e amadurecendo a ideia de abrir uma para meninas
pobres e abandonadas, com a finalidade de contribuir para a construção de um forte
tecido ético através da educação. Antecipou assim o processo de valorização e promoção
da mulher, cujas metodologias podem ainda servir de inspiração para análogos esforços
nos nossos dias. Rita tinha 32 anos, quando, também com a ajuda do Padre Lapa,
a 24 de Setembro de 1880, deu os primeiros passos da fundação da Congregação religiosa
“Jesus Maria José”, com a abertura do primeiro colégio para raparigas pobres e abandonadas.
Tornou-se mendicante para sustentar o Instituto, e a primeira colecta foi feita precisamente
às portas de uma igreja, aqui em Viseu. A Obra cresceu com o tempo, no meio de variadas
vicissitudes e dificuldades, abrindo colégios nas dioceses de Castelo Branco, Porto,
Viseu e Guarda. Antes de morrer, viu a sua obra estender-se ao Brasil, aonde conseguiu
enviar as suas religiosas e onde se inaugurou um primeiro colégio na cidade de Igarapava,
diocese de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo. Hoje, a sua memória estende-se
de Portugal ao Brasil, da Bolívia ao Paraguay, de Angola a Moçambique, ligando o país
natal aos continente americano e africano.
4. Recolhendo a herança espiritual
do povo português, a Madre Rita foi uma apóstola convicta do santo Rosário, antecipando,
em certo sentido, a mensagem de Nossa Senhora aos pastorinhos de Fátima. A historiografia
eclesiástica portuguesa, como também alguns mariólogos conhecidos, não hesitam em
ver as aparições de Fátima no pano de fundo da já intensa piedade mariana do povo
português. A nova Beata aparece, nesse contexto, como um feliz elo de união e um sinal
hermenêutico da predilecção de Maria pelo nosso povo, poupado aos horrores da guerra
e inundado de uma luz mariana que ainda hoje irradia no mundo. A Madre Rita Lopes
de Almeida não é apenas uma grande devota e apóstola incansável do Rosário. È também
uma enamorada de Jesus na Eucaristia, do Coração de Jesus e da Sagrada Família. Daí
provinha a formidável energia do seu zelo apostólico, da sua grande aventura espiritual.
O seu amor a Cristo levou-a a abrir-se aos outros, a ir ao seu encontro, convidando-os
a viver uma vida renovada em Cristo. Soube ler os sinais dos tempos que pediam respostas
novas e corajosas para as necessidades de então: as diversas formas de pobreza, tanto
materiais como morais e espirituais, da sociedade.
5. Nesta linha se insere
o seu carisma: a restauração da dignidade da família – ameaçada de desagregação –
segundo o espírito da Família de Nazaré, costruindo lares felizes; a libertação da
mulher da escravidão da propstituição e, portanto, a sua promoção; a educação das
crianças pobres e abandonadas, para preservá-las dos perigos resultantes da pobreza
e da miséria. Não há dúvida que, nas preocupações da Madre Rita, a família ocupa
um lugar destacado. Ela mesma se empenhava em visitar as famílias, sobretudo as dilaceradas
por divisões, infidelidades e vícios, chegando a envolver-se pessoalmente em situações
delicadas, a ponto de receber por isso ameaças de morte. E quantas vezes hospedou
na casa paterna mulheres desejosas de conversão e serenidade! A Madre Rita não
se cansava de dizer que, na base de toda a família, está sempre o amor: um amor não
egoísta, ma generoso, aberto à vida. É precisamente isso o que recentemente sublinhava
o Papa Bento XVI Falando da família, dizia que é necessário “superar uma visão
privatista do amor, hoje tão espalhada. O amor autêntico transforma-se numa luz que
guia toda a vida para a sua plenitude, gerando uma sociedade habitável para o homem.
A comunhão de vida e de amor, que é o matrimónio, configura-se assim como um autêntico
bem para a sociedade”. Além da libertação e promoção da mulher, a nova Beata
tinha uma paixão educativa pela formação humana e cristã das crianças. A elas se dirige
o seu programa pedagógico, com uma preferência pelas mais pobres, intuindo a exigência
social subjacente à caridade cristã. No Património espiritual está escrito:
“Estava ela convencida que a vida inteira depende dos princípios recebidos na infância;
por isso, entregou-se com tanto zelo à obra da educação das meninas, constituindo
isso um dos pontos principais das suas constituições: acolher a infância pobre e
abandonada”. Dinamismo e creatividade, maternidade e diálogo, actividade e
participação: são estes os traços salientes de uma pedagogia religiosa, simples e
iluminada, que fazem da Madre Rita um dos grandes Mestres da pedagogia cristã do seu
tempo, que deram respostas concretas e participadas às “novas Escolas leigas” que
se iam construindo nos Estados europeus, entre finais do século XIX e inícios do século
XX. A mensagem da Beata Rita é de enorme actualidade. As numerosas tensões e grandes
problemas do nosso tempo, antes de com qualquer outro meio, podem e devem resolver-se
com uma nova grande e empenhada acção educativa. Dizia a esse respeito o Padre Gussanti
que “se houvesse uma educação do povo, todos estaríamos melhor”. Da educação,
sobretudo das crianças e dos jovens, depende o futuro de um País, da inteira sociedade.
Eis o grande e precioso ensinamento da Madre Rita de Almeida.
6. Esta é a mulher
extraordinária que a Igreja propõe hoje ao Povo cristão como modelo de santidade.
Uma mulher que, na história, não ficou com a cabeça “no ar”, nem viveu como os que
não têm esperança ou se julgam sem futuro. Empenhou-se ao máximo, sobre a terra, seguindo
as inspirações que o Espírito Santo nela suscitava, vivendo com os pés bem firmes
sobre a terra. Se é verdade que todo o Santo é sempre uma palavra que Deus dirige
de forma concreta ao homem, é precisamente isso o que queremos aprender da Madre Rita
Lopes de Almeida: deixar-nos compenetrar do mistério da Ressurreição de Cristo e da
sua Ascensão ao Céu, porque, também nós, como a nova Beata, queremos ser felizes “nesta
carne”, e não sem ela. O encontro “com o Senhor que vive” ou o “ir ter
com o Senhor”: eis o que para nós, cristãos, é o “Céu”. No comportamento e exemplo
da Beata, reconhecemo-nos escolhidos desde a eternidade para sermos, também nós, santos
e santificadores e, como ela, fermento de santidade para os nossos contemporâneos. O
mundo de hoje precisa de Santos, como muitas vezes repetia o Servo de Deus João Paulo
II. Hoje, porém, diz Simone Weil: “não basta ser santos, é necessária a santidade
que o presente exige, uma santidade nova, também essa sem precedentes… O mundo precisa
de Santos que tenham genialidade, como uma cidade onde grassa a peste precisa de médicos”.
Sim, precisa de homens e mulheres que vivam em plenitude a sua vocação humana e cristã.
Como a nova Beata Rita de Almeida.
Viseu, 28 de Maio de 2006. José Card.
Saraiva Martins Prefeito da Congregação das Causas dos Santos