Os "fundamentais da fé católica na enciclica de Bento XVI "Deus é Amor": entrevista
ao arcebispo Angelo Amato, Secretário da Congregação para a doutrina da fé
O secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, D. Angelo Amato, é um dos homens
que melhor conhece Bento XVI, tendo sido seu “braço direito” ao longo de muitos anos,
no referido Dicastério. Para ele, a forma e o conteúdo da encíclica “Deus Caritas
est” não foram nenhuma surpresa, mas, pelo contrário, confirmam a intuição fundamental
de Joseph Ratzinger: “este é um texto que propõe, de novo, os ‘fundamentais’ da fé
católica”.
“O Papa quis relançar a ideia de que o Deus cristão é um Deus de
caridade”, afirma. " O tema vem enunciado pelo próprio Santo Padre precisamente
no final da Encíclica (quando escreve): “Viver o amor e deste modo fazer entrar no
mundo a luz de Deus – eis aquilo a que eu quereria convidar com a presente Encíclica”
(n.39). É de facto uma Encíclica sobre o amor cristão, dirigida a toda a Igreja e
assinada no dia 25 de Dezembro de 2005, festa que celebra o natal de Jesus Cristo,
amor de Deus incarnado: “Deus amou tanto o mundo ao ponto de dar o seu Filho unigénito”.
O início, joanino, resume a temática: “Deus é amor; quem está no amor permanece em
Deus e Deus permanece nele” (1 Jo 4, 16). É este o centro sempre actual da fé cristã:
“Num mundo em que o nome de Deus – adverte o Papa – vem por vezes posto em ligação
com a vingança e até mesmo com o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem
de grande actualidade e de significado muito concreto.
- A Encíclica
não é muito extensa, observam alguns…
- Não obstante as antecipações
jornalísticas que referiam uma alegada brevidade do documento, a verdade é que se
trata de uma abordagem muito ampla. Por exemplo, comparando esta Encíclica com a última
de João Paulo II “Ecclesia in Eucharistia”, verifica-se que ambas têm praticamente
a mesma extensão (75 páginas a de Bento XVI e 77 a do Papa Wojtyla, embora o texto
sobre a Eucaristia fosse dividido em seis capítulos, com 62 números, e este sobre
o Amor conste apenas de duas Partes, com 42 números ). Em todo o caso, é de notar
que a encíclica “Deus caritas est” não é um políptico, com uma multiplicidade de dimensões
e de variações sobre o tema. Pode-se dizer que é antes um grandioso quadro renascimental
com dois níveis: no primeiro, no alto, o amor de Deus, e no segundo, em baixo, o reflexo
deste amor no coração do homem e na acção da Igreja para com toda a humanidade. Trata-se
de uma concentração temática muito eficaz, para poder atingir directamente a mente
e o coração do homem contemporâneo, despertando nele a alegria do autêntico amor.
-
Tratando, na primeira Parte, do significado do amor, o Papa refere o uso que na antiga
Grécia se fazia da palavra “eros” para exprimir o amor entre o homem e a mulher. Uma
palavra nunca usada no Novo Testamento e só duas vezes na versão grega do Antigo.
O Novo Testamento prefere utilizar o termo “ágape”, que constitui a novidade do Cristianismo.
Que relação estabelece o Santo Padre entre “eros” e “ágape”.
- No ser
humano, composto de alma e corpo, pode-se considerar superado o desafio do eros quando
existe harmonia entre estes dois princípios, uma vez que quem ama não é só o corpo
nem a alma só, mas sim a pessoa. É na união harmoniosa entre corpo e alma o eros até
à sua verdadeira grandeza. Ainda hoje o cristianismo é acusado de ser adversário
da corporeidade. Na realidade, é um engano a actual exaltação exasperada do corpo
. O sexo e o próprio homem tornaram-se mercadoria que se compra e vende. Parece que
o corpo não faça parte da pessoa, que não se integre mas antes se aliene da existência
pessoal, rejeitado no campo puramente biológico. O que pode também levar a odiar a
corporeidade. O cristianismo, pelo contrário, considera o homem como ser uni-dual
, em que espírito e matéria se compenetram reciprocamente experimentando ambos uma
nova dignidade. O eros deve portanto superar o seu carácter egoístico e tornar-se
preocupação pelo outro, procura do bem do amado até ao sacrifício. Deste amor faz
parte a exclusividade – “só esta única pessoa” – e a perenidade, no sentido de “para
sempre”, até à eternidade. É por isto que o amor é êxtase, não tanto como momento
de embriaguez, mas como caminho e êxodo permanente - do eu fechado em si mesmo – em
direcção ao dom de si e à redescoberta de si (implicada na) descoberta de Deus: “Quem
procura salvar a própria vida, perdê-la-á; quem a perde, salvá-la-á”. Digamos que
o Papa não põe em contraste o eros como amor mundano ou amor concupiscentiae e a ágape
como expressão do amor plasmado pela fé (amor benevolentiae). Eros e ágape – amor
ascendente e amor descendente – nunca se separam completamente um do outro. Isolados,
levam à desumanização do amor, à sua caricatura. Por outro lado, ágape, o amor oblativo,
não pode dar sempre, se nunca recebe. Quem quer dar deve também receber, bebendo da
nascente originária do amor de Deus em Cristo.
- Passemos então à segunda
Parte, que trata da Caritas, como exercício do amor da parte da Igreja comunidade
de amor. Como responder à objecção que alguns levantam: de que aquilo de que os pobres
precisam é de justiça, não de caridade?
- O Papa responde a esta objecção,
que surgiu no século XIX: os pobres não teriam necessidade de caridade, mas sim de
justiça. Mais ainda, a caridade poderia dissimular a conservação do poder da parte
de poucos. Desejar-se-ia assim instaurar uma nova ordem em que todos tivessem o necessário,
sem necessidade das obras de caridade. Pela sua parte o magistério pontifício, sobretudo
a partir da “Rerum Novarum” de Leão XIII (1891) até à “Centesimus Annus” de João Paulo
II (1991) foi desenvolvendo e propondo uma doutrina social da Igreja, que em 2004
foi apresentada de modo orgânico no Compêndio da Doutrina Social da Igreja. À falência
da proposta marxista, a Igreja responde com a sua doutrina social, que é uma indicação
fundamental que oferece orientações válidas para a sociedade de hoje. De per si toca
ao Estado assegurar a justiça, na liberdade. Mas subsiste a questão de discernir que
coisa é justa, aqui e agora. É a este ponto que intervém a fé, não para impor, mas
para iluminar e purificar a razão prática, de modo que esta possa ver e praticar a
justiça. A doutrina social da Igreja é uma ajuda à formação da consciência na política
para a consecução da justiça. Contudo, mesmo na sociedade mais justa será sempre necessário
o amor, a caritas. Até porque também nas sociedades mais justas e opulentas há sofrimento,
indigência, solidão, necessidade de acolhimento, consolação, partilha, ajuda.
-
Quais são as características da actividade caritativa da Igreja?
-
A actividade caritativa da Igreja tem uma tríplice conotação, exemplificada a partir
da parábola evangélica do bom Samaritano. É, antes de mais, resposta a uma situação
imediata de indigência: os famintos devem ser saciados, os nus devem ter com que se
cobrir, os doentes precisam de ser tratados…: a isto provêem as diversas organizações
caritativas eclesiais. Esta actividade é, por outro lado, independente dos partidos
e das ideologias, enquanto actualização aqui e agora do amor de que o homem sempre
tem necessidade: trata-se de rejeitar a estratégia marxista, para a qual o homem necessitado
que vive no presente é sacrificado ao moloch de um futuro incerto e irrealizável.
Finalmente, não deve ser um meio daquilo que hoje em dia é indicado como proselitismo,
uma vez que o amor é gratuito. Isto, porém, não significa deixar de lado Deus e Cristo,
porque muitas vezes a raiz do sofrimento humano é precisamente a ausência de Deus.
A enciclica menciona a obra dos grandes santos da caridade...
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A concluir, a Encíclica recorda o famoso gesto de Martino de Tours, guarda imperial,
muito jovem ainda, que num Inverno rigorosíssimo, às portas de Amiens, deu a parte
mais quente – o forro – do seu manto branco, a um pobre, que tremia de frio perante
a indiferença dos transeuntes. “Naquela noite o próprio Jesus lhe apareceu em sonho,
revestido daquele manto, a confirmar a perene validade da palavra evangélica: ‘Estava
nu e revestistes-me. Cada vez que o fizestes a um dos meus irmãos mais pequenos, foi
a mim que o fizestes’.” Toda a história da Igreja mostra este serviço da caridade
exercido de modo cada vez mais criativo nas iniciativas de promoção humana e de formação
cristã. As ordens e as congregações religiosas masculinas e femininas constituem uma
espécie de rede protectiva de acolhimento e de assistência para a humanidade inteira.
Sem esta protecção o mundo seria uma selva. O Papa cita expressamente algumas destas
figuras supremas da caridade cristã: Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João de
Deus, Camilo de Lellis, Vicente de Paulo, Luísa de Marillac, Giuseppe Cottolengo,
João Bosco, Luigi Orione, Teresa de Calcutá: “Permanecem modeles insignes da caridade
social para todos os homens de boa vontade. São os santos os verdadeiros portadores
da luz no interior da história, porque são e mulheres de fé, de esperança e de amor”.
De entre os santos, sobressai Maria, a mulher que ama, serve, acolhe os discípulos
de Jesus como seus filhos e continua, do céu, a sua obra de intercessão materna.