2006-01-26 11:28:36

Os "fundamentais da fé católica na enciclica de Bento XVI "Deus é Amor": entrevista ao arcebispo Angelo Amato, Secretário da Congregação para a doutrina da fé
 


O secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, D. Angelo Amato, é um dos homens que melhor conhece Bento XVI, tendo sido seu “braço direito” ao longo de muitos anos, no referido Dicastério. Para ele, a forma e o conteúdo da encíclica “Deus Caritas est” não foram nenhuma surpresa, mas, pelo contrário, confirmam a intuição fundamental de Joseph Ratzinger: “este é um texto que propõe, de novo, os ‘fundamentais’ da fé católica”.

“O Papa quis relançar a ideia de que o Deus cristão é um Deus de caridade”, afirma.
" O tema vem enunciado pelo próprio Santo Padre precisamente no final da Encíclica (quando escreve): “Viver o amor e deste modo fazer entrar no mundo a luz de Deus – eis aquilo a que eu quereria convidar com a presente Encíclica” (n.39). É de facto uma Encíclica sobre o amor cristão, dirigida a toda a Igreja e assinada no dia 25 de Dezembro de 2005, festa que celebra o natal de Jesus Cristo, amor de Deus incarnado: “Deus amou tanto o mundo ao ponto de dar o seu Filho unigénito”. O início, joanino, resume a temática: “Deus é amor; quem está no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (1 Jo 4, 16). É este o centro sempre actual da fé cristã: “Num mundo em que o nome de Deus – adverte o Papa – vem por vezes posto em ligação com a vingança e até mesmo com o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande actualidade e de significado muito concreto.


- A Encíclica não é muito extensa, observam alguns…


- Não obstante as antecipações jornalísticas que referiam uma alegada brevidade do documento, a verdade é que se trata de uma abordagem muito ampla. Por exemplo, comparando esta Encíclica com a última de João Paulo II “Ecclesia in Eucharistia”, verifica-se que ambas têm praticamente a mesma extensão (75 páginas a de Bento XVI e 77 a do Papa Wojtyla, embora o texto sobre a Eucaristia fosse dividido em seis capítulos, com 62 números, e este sobre o Amor conste apenas de duas Partes, com 42 números ). Em todo o caso, é de notar que a encíclica “Deus caritas est” não é um políptico, com uma multiplicidade de dimensões e de variações sobre o tema. Pode-se dizer que é antes um grandioso quadro renascimental com dois níveis: no primeiro, no alto, o amor de Deus, e no segundo, em baixo, o reflexo deste amor no coração do homem e na acção da Igreja para com toda a humanidade. Trata-se de uma concentração temática muito eficaz, para poder atingir directamente a mente e o coração do homem contemporâneo, despertando nele a alegria do autêntico amor.


- Tratando, na primeira Parte, do significado do amor, o Papa refere o uso que na antiga Grécia se fazia da palavra “eros” para exprimir o amor entre o homem e a mulher. Uma palavra nunca usada no Novo Testamento e só duas vezes na versão grega do Antigo. O Novo Testamento prefere utilizar o termo “ágape”, que constitui a novidade do Cristianismo. Que relação estabelece o Santo Padre entre “eros” e “ágape”.


- No ser humano, composto de alma e corpo, pode-se considerar superado o desafio do eros quando existe harmonia entre estes dois princípios, uma vez que quem ama não é só o corpo nem a alma só, mas sim a pessoa. É na união harmoniosa entre corpo e alma o eros até à sua verdadeira grandeza. Ainda hoje o cristianismo é acusado de ser adversário da corporeidade. Na realidade, é um engano a actual exaltação exasperada do corpo . O sexo e o próprio homem tornaram-se mercadoria que se compra e vende. Parece que o corpo não faça parte da pessoa, que não se integre mas antes se aliene da existência pessoal, rejeitado no campo puramente biológico. O que pode também levar a odiar a corporeidade. O cristianismo, pelo contrário, considera o homem como ser uni-dual , em que espírito e matéria se compenetram reciprocamente experimentando ambos uma nova dignidade. O eros deve portanto superar o seu carácter egoístico e tornar-se preocupação pelo outro, procura do bem do amado até ao sacrifício. Deste amor faz parte a exclusividade – “só esta única pessoa” – e a perenidade, no sentido de “para sempre”, até à eternidade. É por isto que o amor é êxtase, não tanto como momento de embriaguez, mas como caminho e êxodo permanente - do eu fechado em si mesmo – em direcção ao dom de si e à redescoberta de si (implicada na) descoberta de Deus: “Quem procura salvar a própria vida, perdê-la-á; quem a perde, salvá-la-á”. Digamos que o Papa não põe em contraste o eros como amor mundano ou amor concupiscentiae e a ágape como expressão do amor plasmado pela fé (amor benevolentiae). Eros e ágape – amor ascendente e amor descendente – nunca se separam completamente um do outro. Isolados, levam à desumanização do amor, à sua caricatura. Por outro lado, ágape, o amor oblativo, não pode dar sempre, se nunca recebe. Quem quer dar deve também receber, bebendo da nascente originária do amor de Deus em Cristo.


- Passemos então à segunda Parte, que trata da Caritas, como exercício do amor da parte da Igreja comunidade de amor. Como responder à objecção que alguns levantam: de que aquilo de que os pobres precisam é de justiça, não de caridade?


- O Papa responde a esta objecção, que surgiu no século XIX: os pobres não teriam necessidade de caridade, mas sim de justiça. Mais ainda, a caridade poderia dissimular a conservação do poder da parte de poucos. Desejar-se-ia assim instaurar uma nova ordem em que todos tivessem o necessário, sem necessidade das obras de caridade. Pela sua parte o magistério pontifício, sobretudo a partir da “Rerum Novarum” de Leão XIII (1891) até à “Centesimus Annus” de João Paulo II (1991) foi desenvolvendo e propondo uma doutrina social da Igreja, que em 2004 foi apresentada de modo orgânico no Compêndio da Doutrina Social da Igreja. À falência da proposta marxista, a Igreja responde com a sua doutrina social, que é uma indicação fundamental que oferece orientações válidas para a sociedade de hoje. De per si toca ao Estado assegurar a justiça, na liberdade. Mas subsiste a questão de discernir que coisa é justa, aqui e agora. É a este ponto que intervém a fé, não para impor, mas para iluminar e purificar a razão prática, de modo que esta possa ver e praticar a justiça. A doutrina social da Igreja é uma ajuda à formação da consciência na política para a consecução da justiça. Contudo, mesmo na sociedade mais justa será sempre necessário o amor, a caritas. Até porque também nas sociedades mais justas e opulentas há sofrimento, indigência, solidão, necessidade de acolhimento, consolação, partilha, ajuda.

- Quais são as características da actividade caritativa da Igreja?

 
- A actividade caritativa da Igreja tem uma tríplice conotação, exemplificada a partir da parábola evangélica do bom Samaritano. É, antes de mais, resposta a uma situação imediata de indigência: os famintos devem ser saciados, os nus devem ter com que se cobrir, os doentes precisam de ser tratados…: a isto provêem as diversas organizações caritativas eclesiais. Esta actividade é, por outro lado, independente dos partidos e das ideologias, enquanto actualização aqui e agora do amor de que o homem sempre tem necessidade: trata-se de rejeitar a estratégia marxista, para a qual o homem necessitado que vive no presente é sacrificado ao moloch de um futuro incerto e irrealizável. Finalmente, não deve ser um meio daquilo que hoje em dia é indicado como proselitismo, uma vez que o amor é gratuito. Isto, porém, não significa deixar de lado Deus e Cristo, porque muitas vezes a raiz do sofrimento humano é precisamente a ausência de Deus.

 
A enciclica menciona a obra dos grandes santos da caridade...

 

 
- A concluir, a Encíclica recorda o famoso gesto de Martino de Tours, guarda imperial, muito jovem ainda, que num Inverno rigorosíssimo, às portas de Amiens, deu a parte mais quente – o forro – do seu manto branco, a um pobre, que tremia de frio perante a indiferença dos transeuntes. “Naquela noite o próprio Jesus lhe apareceu em sonho, revestido daquele manto, a confirmar a perene validade da palavra evangélica: ‘Estava nu e revestistes-me. Cada vez que o fizestes a um dos meus irmãos mais pequenos, foi a mim que o fizestes’.” Toda a história da Igreja mostra este serviço da caridade exercido de modo cada vez mais criativo nas iniciativas de promoção humana e de formação cristã. As ordens e as congregações religiosas masculinas e femininas constituem uma espécie de rede protectiva de acolhimento e de assistência para a humanidade inteira. Sem esta protecção o mundo seria uma selva. O Papa cita expressamente algumas destas figuras supremas da caridade cristã: Francisco de Assis, Inácio de Loyola, João de Deus, Camilo de Lellis, Vicente de Paulo, Luísa de Marillac, Giuseppe Cottolengo, João Bosco, Luigi Orione, Teresa de Calcutá: “Permanecem modeles insignes da caridade social para todos os homens de boa vontade. São os santos os verdadeiros portadores da luz no interior da história, porque são e mulheres de fé, de esperança e de amor”. De entre os santos, sobressai Maria, a mulher que ama, serve, acolhe os discípulos de Jesus como seus filhos e continua, do céu, a sua obra de intercessão materna.
 







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