A vitória sobre os medos é uma vitória espiritual, porque o é da liberdade:salientou
o Cardeal Patriarca de Lisboa na sua mensagem de Natal dirigida a todos os portugueses.
Mensagem de Natal do Patriarca de Lisboa, D. José da Cruz Policarpo
1. Mais
uma vez, é-me oferecida a possibilidade de dirigir a todos os portugueses, espalhados
pelo mundo, uma mensagem de fraternidade e de paz. Faço-o pessoalmente e em nome da
Igreja. Dirijo-me a todos, crentes e descrentes, porque acredito que aquele Menino,
que nasceu em Belém, continua a ser um abraço do amor de Deus por todos os homens.
O espírito do Natal é de paz e de alegria. É assim desde aquela noite em Belém, quando
um mensageiro celeste anunciou aos pastores: “Não temais, porque vos anuncio uma grande
alegria para todo o povo: nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é
Cristo Senhor”. Porque vos falo em nome da Igreja, tenho de vos dizer com simplicidade,
que o motivo da nossa alegria é Jesus Cristo, continua a ser Jesus Cristo, Vivo na
Sua Igreja, expressão sempre actual do amor de Deus por nós, única fonte verdadeira
da paz entre os homens. Há apenas algumas semanas, a Igreja de Lisboa exprimiu a toda
a cidade a alegria de termos permanentemente connosco Cristo Vivo, o Deus amoroso
no meio do Seu Povo. Fizemo-lo com simplicidade e beleza, com a autenticidade de quem
deseja conviver com todos, partilhando a verdade mais profunda do nosso coração; fizemo-lo
em festa recolhida e serena, e convidámos todos a juntar-se a nós. E vieram muitos,
centenas de milhares, e como naquela noite em Belém, Maria, a Mãe de Jesus, foi a
Rainha da nossa festa. Ao contemplar a sua imagem entre a multidão, na beleza do seu
rosto imaculado, expressão mesma da ternura de Deus, senti a actualidade da mensagem
do Anjo aos Pastores de Belém: “Não temais; anuncio a todo o Povo uma grande alegria;
nasceu-vos, na casa de David, um Salvador”.
2. Não temais! A mensagem
desta noite convida-nos a vencer os medos que tolhem a nossa vida. Hoje, há muita
gente com medo, o que impede as pessoas de serem felizes. Para enfrentar com liberdade
as realidades que nos atemorizam, é preciso vencer o medo, porque este é um sentimento
que tolhe a liberdade e enfraquece a coragem de lutar. O anúncio libertador de Jesus
Cristo começa frequentemente assim: não temais, Eu venci o mundo. A vitória sobre
os medos é uma vitória espiritual, porque o é da liberdade. Paradoxalmente, as chamadas
sociedades evoluídas, que optaram por modelos de desenvolvimento destinados a resolver,
pela ciência e pela técnica, as principais ameaças que pesavam sobre o ser humano,
não anularam o medo. O medo da violência, que gera insegurança; o medo de perder o
trabalho ou de nem sequer conseguir o primeiro emprego; o receio de que falhe a relação
de amor em que se depositou toda a confiança; a aflição das crianças perante a desavença
dos pais; o medo da morte. É preciso enfrentar as realidades que nos atemorizam, mas
isso só é possível, se vencermos o medo. Nossa Senhora prometeu aos Pastorinhos: “Não
tenhais medo! O meu Imaculado Coração triunfará”. Essa é a verdadeira vitória sobre
o medo, a força de um coração renovado. Esse foi o segredo dos heróis, dos mártires
e dos santos, em todos os tempos. Jesus, preparando os discípulos para as dificuldades
que vão encontrar, diz-lhes: “Não tenhais medo daqueles que vos podem matar o corpo,
mas nunca poderão matar-vos a alma. Temei esses que podem levar à perdição o vosso
corpo e a vossa alma” (cf. Mt. 10,28). Este “não temais”, dito pelo Anjo, é o grito,
tantas vezes repetido pelos profetas, aos crentes de Israel. Quem confia no Senhor
não terá medo, como canta o salmista: “O Senhor é a minha luz e salvação, de quem
haveria de ter medo? O Senhor é a muralha da minha vida, perante quem tremerei?” (Ps.
27,1).
3. O Anjo acrescenta a seguir: “anuncio a todo o povo uma grande
alegria: nasceu-vos um Salvador”. A Igreja não pode esquecer isto: a alegria da Salvação
é para ser anunciada a todo o povo. E esta exigência de anunciar a Salvação, só se
torna inevitável para os crentes, que não podem deixar de evangelizar. Aqueles a quem
anunciamos são livres de escolher, ou não, este anúncio libertador. Aceitar o Evangelho
é sempre um acto de liberdade, e só os homens livres podem acolher a mensagem de Jesus,
porque não estão estagnados no seu presente, mas dispostos a abrir-se a uma luz nova
e a uma nova etapa da liberdade. Cada homem guarda no íntimo do coração a simplicidade
de se deixar atrair e encantar pela beleza de Jesus Cristo, porque Ele penetra em
portas que ninguém abriu. A luz do Natal aparece sempre como uma estrela que é preciso
seguir, ultrapassando, corajosamente, a fronteira das nossas certezas. Nesta noite,
toda a cidade, cada família, a vida de cada um de nós, estão envoltas em sinais que
nos falam da alegria do Natal, porque na abordagem do mistério, os sinais significam
mais do que os discursos. Convido cada um de vós, nesta noite, a referir ao nascimento
de Jesus e à alegria que ele significou para a humanidade, os sinais que vos envolvem,
porque constituem a linguagem simbólica desta festa. As estrelas luminosas sugerem-nos
a estrela de Belém, cuja luz levou os Magos ao presépio. A luz é o elemento principal
nesta festa: as ruas estão iluminadas, as árvores resplandecem, os edifícios e as
lojas atraem pela intensidade da luz. Toda essa luz lembra-nos que Cristo é a luz
do mundo, e que a Liturgia há-de celebrar gloriosamente essa luz, na Páscoa da Sua
ressurreição. Não será de uma outra luz que andamos à procura, nos caminhos, tantas
vezes sombrios, da nossa vida? No Natal trocam-se presentes. Pratica-se uma generosidade,
como em nenhum outro dia do ano, para manifestarmos a amizade, fraternidade, alegria.
Mas essa é a mensagem de Jesus: dai de graça, porque tudo recebeste de graça. Purifiquemos
a nossa intenção em cada presente, façamo-lo por amor, e recordemos que o mais importante
é que sejamos dons uns para os outros. Na intimidade dos vossos lares encenastes,
talvez, o presépio de Belém. Belíssima tradição cristã de figurar os Mistérios, ele
recorda-nos o momento mais intenso de uma família, a família de Jesus, a quem nem
a pobreza e a dificuldade das circunstâncias impediram a alegria sublime da fé e do
amor, expressos naquele “Menino”, prometido e esperado, dom de Deus que nos é renovado
pelos braços estendidos de Sua Mãe. Saúdo, neste momento, aquelas famílias para quem
é Natal, porque celebram o sentido do seu amor numa criança que nasceu. Se, nesta
noite, pensarmos no sentido de tudo o que nos rodeia, abriremos o nosso coração à
beleza e poderemos celebrar, em festa, a Missa do Natal, onde a Liturgia nos convida
a exultar, porque Jesus nasceu para nós e continua vivo, no meio de nós.
4.
Mas o Anjo acrescenta: “nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador” e esse facto
é mais um motivo da alegria anunciada: aquele Menino é um príncipe real. Que o Messias
seria um descendente de David, era a mais sólida das promessas de Israel. Foi por
isso que Maria e José desceram de Nazaré, na Galileia, até Belém, a cidade de David,
porque José era da casa de David (cf. Lc. 2,4). No relato da Anunciação diz-se que
o Anjo apareceu a uma Virgem, de nome Maria, noiva de José, que era da casa de David
(cf. Lc. 1,27). E na Sua última vinda a Jerusalém, onde será condenado à morte, Jesus
entra na cidade aclamado como Messias Rei e a multidão exclamava: “Hossana ao Filho
de David! Bendito o que vem em nome do Senhor” (Mt. 21,10). É por isso que o Rei Herodes
quer matar o Menino, pois teme que Ele ocupe o trono de Israel (cf. Mt. 2,1ss). O
Messias que nasceu em Belém, na simplicidade de uma gruta, é um Príncipe Real. Jesus
nunca rejeitou esta Sua condição real. Mesmo durante o seu processo, em que essa é
uma das acusações que Lhe fazem, Pilatos pergunta-lhe directamente: “Tu és Rei” e
Jesus responde: “Tu o dizes. Sou Rei, para isso vim ao mundo. Mas o meu reinado não
é deste mundo”. (Jo. 18,34ss). O verdadeiro triunfo da realeza de Cristo, é a Sua
vitória sobre a morte. Isso nenhum Senhor deste mundo jamais conseguiu. É uma realeza
que se afirma pelo serviço e pelo dom, se exprime na proclamação da verdade, e triunfa
na instauração do amor. O Espírito Santo, amor de Deus derramado nos nossos corações,
é a manifestação definitiva da realeza de Jesus Cristo. A afirmação clara de que o
Seu reinado não é deste mundo, pode tranquilizar todos quantos ainda hoje temem que
a Igreja queira dominar a sociedade. Se ela tentasse fazê-lo, ou quando o fez, foi
infiel ao Seu Senhor e Rei. Ela quer seguir Jesus Cristo no serviço gratuito e generoso,
na proclamação da verdade, na generosidade do amor. A Igreja não quer dominar a Cidade,
quer humanizá-la. Que ninguém queira expulsar a Igreja da cidade, porque ela é, na
sua pobreza e simplicidade, portadora de um anúncio de libertação: é possível viver
em paz, amarmo-nos uns aos outros como irmãos, defender quem é atacado ou esquecido,
consolar quem está triste, porque um Salvador nasceu para nós, e continua Vivo, no
triunfo da Sua realeza. Neste Natal deixai que a alegria e a bondade inundem os vossos
corações.