O homem hoje confunde a liberdade com as trevas do pecado. Bento XVI na homilia da
Missa Imaculada Conceição, na Basilica de São Pedro
“A vontade de Deus não é para o homem uma lei imposta de fora, que o constringe,
mas sim a medida intrínseca da nossa natureza… Se vivemos contra o amor e contra a
verdade – contra Deus, destruímo-nos uns aos outros e destruímos o mundo.” “No
fundo, pensamos que o mal é bom, que precisamos ao menos de um pouco de mal para experimentar
a plenitude do ser… Mas não é assim: o mal envenena sempre; não eleva o homem, abaixa-o,
humilha-o, fere-o”. “O homem que se volta para Deus não se torna mais pequeno, mas
sim maior, porque graças a Deus e juntamente com Ele, torna-se grande, torna-se divino,
torna-se verdadeiramente o que está chamado a ser”. Estas algumas das passagens
centrais da homilia de Bento XVI na Missa deste dia 8 de Dezembro, na basílica de
S. Pedro, nos 40 anos do encerramento do Concílio Ecuménico Vaticano II.
Começando
por recordar o lugar reservado a Maria pelo Concílio, o Papa observou que se tratou
de uma “orientação de todo o caminho” conciliar”, que evoca “a imagem da Virgem que
escuta, que vive na Palavra de Deus, que guarda no seu coração as palavras que vêm
de Deus e, compondo-as como num mosaico, aprende a compreendê-las”. “A grande crente
que, cheia de confiança, se coloca nas mãos de Deus, abandonando-se à sua vontade”,
“a humilde Mãe que, quando o exige a missão do Filho, se põe de lado”, “e ao mesmo
tempo a mulher corajosa que, quando os discípulos fogem, permanece de pé junto à Cruz”. Evocando
o título de “Mãe da Igreja”, proclamado por Paulo VI (no encerramento da III sessão
do Concílio, em Novembro de 64), observou Bento XVI: “Com este título o Papa resumia
a doutrina mariana do Concílio e fornecia a chave para a sua compreensão. Maria não
está apenas numa singular relação com Cristo, o Filho de Deus, que, como homem, se
quis tornar seu filho. Estando totalmente unida a Cristo, ela pertence também totalmente
a nós”. “Maria está tão profundamente ligada ao grande mistério da Igreja que ela
e a Igreja são inseparáveis, como ela e Cristo são inseparáveis”. Interrogando-se
sobre o que significa “Maria, a Imaculada”, Bento XVI, partindo do Evangelho da anunciação
observou: “A saudação do anjo está tecida com os fios do Antigo Testamento, especialmente
do profeta Sofonias”, fazendo-nos ver que Maria “leva em si o grande património sacerdotal
de Israel, ela é ‘o santo resto’ de Israel”. “Nela está presente a verdadeira Sião,
a viva e pura morada de Deus. Nela mora o Senhor, nela encontra o lugar do Seu repouso.
Ela é a casa viva de Deus, que não habita em edifícios de pedra, mas no coração do
homem vivo”. “Ela é o rebento do qual derivou a árvore da redenção e dos redimidos.
Deus não fracassou.” “Deus não fracassou. Na humildade da casa de Nazaret vive
o Israel santo, o resto puro. Deus salvou o Seu povo. Do tronco abatido refulge novamente
a sua história, tornando-se uma nova força viva que orienta e impregna o mundo. Maria
é o Israel santo; ela diz ‘sim’ ao Senhor, coloca-se plenamente à Sua disposição,
tornando-se assim o templo vivo de Deus”.
A parte final da sua homilia, especialmente
densa e vibrante, dedicou-a Bento XVI ao comentário da primeira leitura, capítulo
três do Livro do Génesis, que nos pode ajudar a compreender um pouco “o que é o pecado
original, o pecado hereditário, e o que é a redenção”. A cena da tentação de Adão
e Eva – observou – mostra-nos que “o homem desconfia de Deus. Alimenta a suspeita
que Deus, ao fim e ao cabo, lhe rouba algo da sua vida, que Deus é um concorrente
que limita a nossa liberdade e que só seremos plenamente seres humanos quando O tivermos
posto de lado, que só assim poderemos realizar em plenitude a nossa liberdade. O homem
vive dominado pela suspeita de que o amor de Deus crie uma dependência e de que seja
necessário desembaraçar-se desta dependência para ser totalmente o que é”. “O homem
não quer contar sobre o amor, que não lhe parece ser digno de confiança; conta unicamente
com o seu conhecimento, na medida em que este lhe confere poder. Mais do que sobre
o amor, conta com o poder com o qual quer tomar em mão de modo autónomo a sua vida”.
Ora – insistiu Bento XVI - “o amor não é dependência, mas sim dom que nos faz
viver. A liberdade de um ser humano é a liberdade de um ser limitado”. “Só a podemos
possuir como uma liberdade partilhada, na comunhão das liberdades”, “vivendo de modo
justo”, “segundo a verdade do nosso ser, isto é, segundo a vontade de Deus”. “Se
vivemos contra o amor e contra a verdade – contra Deus, destruímo-nos uns aos outros
e destruímos o mundo. E então não encontramos a vida, mas tomamos o partido da morte.
É tudo isto que é contado em imagens imortais na história da queda original e da expulsão
do homem do Paraíso terrestre”. “Com esta narração, não se descreve só a história
dos inícios, mas a história de todos os tempos. Todos levamos dentro de nós uma gota
do veneno daquele modo de pensar ilustrado nas imagens do Livro do Génesis. É a esta
gota de veneno que nós chamamos pecado original”. “Precisamente na festa da Imaculada
Conceição emerge em nós a suspeita de que uma pessoa que não peca seja na prática
uma pessoa aborrecida; que lhe falte qualquer coisa na vida – a dimensão dramática
de sermos autónomos; que faça parte do verdadeiro ser homem a liberdade de dizer não,
o descer às profundezas das trevas do pecado, o querer agir por si; … que precisamos
de pôr à prova esta liberdade mesmo contra Deus para nos tornarmos realmente, em plenitude,
nós próprios. “Bem vistas as coisas, no fundo pensamos que o mal… é bom. Como
se tivéssemos sempre necessidade ao menos de um pouco de mal para experimentar a plenitude
do ser… Pensamos que pactuar um pouco com o mal, reservar-se um pouco de liberdade
contra Deus, seria bom, porventura mesmo necessário”. Mas basta olhar à nossa
volta para ver que assim não é: “O mal envenena sempre; não eleva o homem, humilha-o,
não o engrandece, não o torna mais puro e mais rico, mas lesa-o, redu-lo, diminui-o.
É isto que devemos aprender no dia da Imaculada: o homem que se abandona totalmente
nas mãos de Deus não se torna um bonequinho de Deus, uma pessoa enfadonha que só sabe
consentir. O homem (que se abandona nas mãos de Deus) não perde a sua liberdade. Só
o homem que confia totalmente em Deus encontra a sua verdadeira liberdade, a vastidão
grande e criativa da liberdade do bem. Quem se volta para Deus não se torna mais pequeno,
mas sim maior, porque é graças a Deus e juntamente com Ele que se torna grande, se
torna divino, se torna verdadeiramente o que está chamado a ser O homem que se coloca
nas mãos de Deus não se afasta dos outros, isolando-se na sua salvação privada; pelo
contrário, só então o seu coração se abre verdadeiramente e o homem se torna um pessoa
sensível, benévola, aberta. Quanto mais o homem está perto de Deus, mais perto está
dos homens. Vemo-lo em Maria”. “Em Maria, a bondade de Deus aproximou-se muito
de nós. É assim que Maria está diante de nós como sinal de consolação, de encorajamento,
de esperança. Ela se nos dirige, encorajando-nos a ousar com Deus: ‘Tenta! Não tenhas
medo de Deus! Tem a coragem de correr o risco da fé! Tem a coragem de correr o risco
da bondade! Tem a coragem de correr o risco do coração puro! Compromete-te com Deus,
e verás que a tua vida se tornará ampla e iluminada, não fastidiosa, mas – ao contrário
– cheia de infinitas surpresas, porque a bondade de Deus nunca se esgota!” “Neste
dia de festa – concluiu o Papa - queremos dar graças a Deus pelo grande sinal da Sua
bondade que nos deu em Maria, Sua Mãe e Mãe da Igreja. Queremos pedir-lhe que coloque
Maria no nosso caminho como luz que nos ajude a tornarmo-nos também nós luz e a levarmos
esta luz às noites da história.”