São estas palavras proferidas por Jesus antes de morrer que me afluem ao pensamento ao falar da morte do Papa João Paulo II. Realmente só faltava este testemunho final da sua vida, fragilizada pelo atentado na Praça de S. Pedro em 1981 e consumada humildemente nas últimas semanas,para completar um longo e original pontificado.
Eleito para a cátedra
de Pedro com apenas 58 anos, uma idade jovem para aquele ministério, manteve-se à
frente da Igreja com o optimismo pascal do dia da sua eleição que nunca abandonaria,
brandindo permanentemente o grito das intervenções de Deus na história do mundo -
«não tenhais medo». Desde aquele dia 16 de Outubro de 1978, viveu numa corrida permanente
de pregoeiro de Cristo vivo , padecente e ressuscitado. Uniu admiravelmente na sua
pessoa o que os nomes bíblicos do seu título sugerem: «João» pelo entusiasmo e relação
afectiva com Jesus Cristo, «Paulo» pela coragem pastoral e universalidade do anúncio.
Se quiséssemos resumir o estilo do seu pontificado usando a linguagem teológica, diríamos
que conjugou sabiamente a instituição e o carisma: a Instituição porque foi sempre
um homem da Igreja, guardou o depósito da fé católica lançando mão dos meios oficiais:
audiências de bispos e autoridades internacionais, sínodos e encíclicas, celebrações
litúrgicas e saudações habituais na praça de S.Pedro, catequeses e reflexões sobre
o mistério cristão e sobre o Concílio, admoestações disciplinares e penas aos membros
da Igreja que afrontaram conscientemente a disciplina da Igreja; e o carisma porque
exerceu o ministério num estilo novo, aproveitando todas as datas que pudessem constituir
oportunidade para o anúncio do Evangelho e imprimindo em tudo visíveis sentimentos
de alegria, com expressões e gestos que não constavam do protocolo habitual: os gestos
claros de afecto pelas crianças, a jovialidade com os jovens, a compreensão profunda
do coração da mulher, o encontro jubiloso com atletas e desportistas, o relacionamento
aberto com as multidões, e tudo isso como algo que transbordava do seu coração e não
de gestos estudados. Exerceu o ministério do governo da Igreja com verdade e alegria,
como uma flor que desabrocha autoridade de modo Nunca a instituição foi rotina, nem
o carisma aligeiramento de recurso. Residiu em Roma para atender em Roma os que ali
se deslocavam e saiu de Roma para saudar em toda a parte os que não podiam ir a Roma.
Viveu a oração oficial da Igreja em liturgias solenes e a oração típica do povo em
gestos tradicionais com velas, terços e coroas de flores em honra de Maria e dos santos.
Para nós, portugueses, teve muitas vezes palavras e gestos de grande estima, quer
nas deslocações a Fátima e passagens pelo nosso território, quer em audiências oficiais.
Foi o Papa do segredo de Fátima , que sobre ele caiu de modo dramático, segredo intimamente
relacionado com a Europa, a Igreja e o mundo. Faleceu no mesmo ano da última vidente,
Lúcia de Jesus, alguns meses depois dela, como que a encerrar um ciclo da história
da Europa, da Igreja e do Mundo. Tinha muitas qualidades naturais que soube cultivar
e colocar exemplarmente ao serviço de Deus e da humanidade, mas o segredo da sua vida
vinha-lhe da oração, da sua intimidade com Deus e com Maria. Nasceu aí a seiva que
alimentou um governo da Igreja exercido com decisão e amor, com optimismo contagiante,
como uma flor que desabrocha no meio das lágrimas do mundo. Era uma alma de oração,
não de vida contemplativa monacal, mas um contemplativo na acção
Não lhe faltaram dores de cabeça, como tinha de acontecer àquele que é ministro da
Cabeça da Igreja. Perante uma cultura de superficialidade, arrastada por emoções sem
princípios estáveis, apresentou-se como o homem da «pedra angular», alicerce de civilização
, arrostando com humilhações e sorrisos escarninhos, e, perante os poderosos do mundo,
quase impermeáveis a valores éticos e religiosos, advertiu-os dos passos errados da
guerra, lembrou direitos dos povos humilhados , avançou com propostas novas de gestos
enormes de perdão, e defendeu intransigentemente os direitos da vida humana desde
a concepção até à morte natural.
Acreditou no impossível acerca da evolução do mundo e tornou realidade o que ninguém
ousava pensar, como seja a queda do muro de Berlim, o desmantelamento do império comunista,
a unidade da Europa, o diálogo com os judeus e os muçulmanos.
Conheceu dias gloriosos como Domingos de Ramos e testemunhou semanas do Calvário como
qualquer cristão: o sofrimento, a humilhação pública e a morte humilde como um pai
de família junto dos filhos. Nos momentos graves da sua vida recorreu aos hospitais,
transportado em ambulâncias como um vulgar mortal , e nas horas finais, quando os
serviços hospitalares se tornavam supérfluos, manteve-se m casa junto daqueles que
eram os mais íntimos colaboradores, morrendo dignamente, como sempre ensinou, depois
de uma longa agonia.
Olhando o seu pontificado do fim para o princípio, sentimos que tudo está consumado,
que era este o percurso que devia ser feito, que era este o programa que Deus lhe
entregou ou que ele intuiu. Faleceu na oitava da Páscoa, quando a Igreja celebra a
vitória de Cristo sobre o mal e sobre a morte, a raiz daquele optimismo que definiu
o seu modo de ser cristão e de governar a Igreja.
Acreditamos que o Espírito Santo vai continuar a dirigir a sua Igreja
Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real
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