Eucaristia e novo sentido da Historia: a catequese quaresmal do cardeal.patriarca
de Lisboa no Domingos de Ramos
Eucaristia e o novo sentido da História
Catequese Quaresmal do Cardeal-Patriarca no Domingo de Ramos
.
1. A Eucaristia é para a Igreja, enquanto comunidade de crentes e Povo de Deus e para
cada crente, na individualidade da sua liberdade e do seu projecto de vida, o momento
mais forte de encontro com Jesus Cristo morto e ressuscitado. Toda a novidade recriadora
que brota dessa comunhão com Cristo vivo, renova-se na Eucaristia, porque aí se actualiza,
em cada momento do tempo e da história, toda a esperança e o sentido novo que, para
o homem e para a humanidade, a Páscoa de Cristo encerra. Tudo o que Jesus Cristo significa,
como novidade, para o homem e para o sentido da história humana, reaviva-se, concretiza-se
e ganha densidade presente, na celebração eucarística.
João Paulo II, ao proclamar o Ano da Eucaristia, recorda a toda a Igreja a doutrina
do Concílio Vaticano II: “Cristo está no centro, não só da história da Igreja, mas
também da história da humanidade. Tudo é recapitulado n’Ele” (cf. Efs. 1,10; Col.
1,15-20) . De facto o Concílio tinha desenvolvido essa verdade de Jesus Cristo como
fonte de sentido para o homem e para a história, presente e futura. Na Gaudium et
Spes, afirma-se: “O Verbo de Deus, por quem todas as coisas foram feitas, Ele próprio
se fez carne, afim de que, homem perfeito, salve todos os homens e recapitule todas
as coisas em si. O Senhor é o termo da história humana, o ponto para que convergem
os desejos da história e da civilização, o centro do género humano, a alegria de todos
os corações e a plenitude das suas aspirações; Ele que o Pai ressuscitou dos mortos,
exaltou e fez sentar-Se à sua direita, constituindo-O juiz dos vivos e dos mortos.
Vivificados e reunidos no seu Espírito, caminhamos para a consumação da história humana,
que corresponde plenamente ao seu desígnio de amor: reunir todas as coisas, tanto
as do céu como as da terra, sob um único Chefe, Cristo” (Efs. 1,10) .
Esta perspectiva que nos leva a descobrir o verdadeiro e definitivo sentido da história
humana em Cristo ressuscitado, brota da nossa fé, mas sobretudo da nossa experiência
viva de comunhão com Cristo vivo, renova-se e actualiza-se em cada Eucaristia, tem
consequências práticas na nossa maneira de viver e de definir o objectivo para onde
caminhamos. Como diz João Paulo II “abre o coração dos crentes a uma compreensão mais
atenta dos mistérios da fé e das próprias realidades terrestres, na luz de Cristo.
N’Ele, Verbo feito carne, revelou-se realmente, não só o mistério de Deus, mas também
o próprio mistério do homem. N’Ele, o homem encontra redenção e plenitude” .
Tudo isto nos diz que a experiência viva de comunhão com Cristo nos alarga o horizonte
da visão cultural da nossa vida e da vida da humanidade, que é fonte de sentido, fundamento
último da exigência moral, base objectiva da esperança. Os membros da Igreja, Corpo
de Cristo, que fazem na Eucaristia essa experiência viva de comunhão com Cristo, podem
renovar, em cada dia, as razões profundas do seu viver, pessoal e colectivo, e serem
no seio da humanidade de cada tempo, o “fermento” de um mundo novo, semente de uma
“civilização do amor”. Tocamos, aqui, o sentido mais profundo, da presença e da missão
da Igreja no mundo, e da força transformadora da cultura, isto é, da compreensão da
vida e da história, que os cristãos podem ser, se celebram continuamente a Páscoa.
Toda a fé vivida tende a torna-se cultura, porque redefine continuamente o sentido
da vida.
Na Eucaristia, a renovação do sentido da história assume-se como missão.
2. A Eucaristia enquanto vivência da humanidade renovada em Cristo, é o ponto de partida
para a missão da Igreja no mundo. A Igreja é enviada para estar e para ser, no meio
da sociedade, esse fermento de renovação, de uma humanidade reencontrada com a sua
dignidade e com o seu destino. Ouçamos o Santo Padre na Mane Nobiscum Domine: “Entrar
em comunhão com Cristo, no memorial da Páscoa, significa experimentar o dever de se
fazer missionário do acontecimento que este rito actualiza. A despedida no final de
cada missa constitui um mandato, que impele o cristão para o dever de propagação do
Evangelho e de animação cristã da sociedade” .
O Santo Padre acrescenta que o cristão encontra na Eucaristia a força interior e o
projecto desta missão. “Para tal missão a Eucaristia oferece, não apenas a força interior,
mas também, em certo sentido, o projecto”.
A força interior é a participação nos sentimentos de Jesus Cristo, que o Espírito
Santo actua em nós e de que nos faz participantes. Esta missão, a Igreja só a pode
realizar com a força de Jesus Cristo, que lhe é comunicada ao vivo e abundantemente
na Eucaristia. “Esta é um modo de ser que passa de Jesus para o cristão e, através
do seu testemunho, tende a irradiar-se na sociedade e na cultura” .
O projecto desta missão só pode ser o de Jesus Cristo, mas só os cristãos o podem
concretizar na realidade da sociedade, em cada lugar e em cada tempo. É uma missão
que prolonga o dinamismo da encarnação. Para que isso aconteça, continua o Santo Padre,
“é necessário que cada fiel assimile, na meditação pessoal e comunitária, os valores
que a Eucaristia exprime, as atitudes que ela inspira, os propósitos de vida que suscita”
.
Nesta presença da Igreja na cidade dos homens, como fermento na massa, porque primícias
de um mundo novo, a primeira atitude tem de ser contemplativa, isto é, orante e adorante.
É preciso deixar que a novidade da Páscoa nos repasse o coração e aprofunde em nós
essa experiência de vida em Cristo, para poder ser vida nova com os outros homens.
Os valores que a Eucaristia encerra
3. Trata-se, é evidente, de valores pessoais e sociais, isto é, de atitudes e perspectivas
pessoais que só encontram a sua verdade no nosso agir em sociedade.
É já um lugar comum afirmar que as crises de civilização são crises de valores, isto
é, de expressões da vida, pessoal e comunitária, que realizam a dignidade do homem
e os mais profundos anseios do seu coração, de verdade, de liberdade, de justiça e
de paz, de amor e fraternidade.
Que valores é que a Eucaristia encerra? Todos, pois como expressão total da plenitude
de Jesus Cristo, da sua fidelidade ao Pai e solidariedade com os homens, seus irmãos,
a Eucaristia, enquanto sacramento da Páscoa, encerra toda a plenitude humana, realizada
e prometida em Jesus Cristo. Por isso a Eucaristia é, também, um momento de descoberta
e de anúncio dessa plenitude que ainda se há-de realizar em cada um de nós e na história
como um todo.
Podemos explicitar alguns desses valores que a Eucaristia encerra e que são fonte
de sentido para a nossa existência histórica concreta: o primeiro e mais decisivo
é, certamente, a certeza experimentada e vivida, da presença de Cristo Vivo no meio
do seu Povo. Na Eucaristia, Cristo ressuscitado convive com a Igreja, Povo de Deus
e é a realização mais completa e radical da presença de Deus no seio do Povo que escolheu,
e da sua própria promessa de ficar com os Seus discípulos até ao fim do mundo. E este
é um dado que influencia profundamente o sentido da nossa vida e da construção da
História: uma vida vivida em interacção com a própria acção de Deus, através do Espírito
de Cristo ressuscitado, é diferente da vida vivida sem Deus ou com um Deus distante
e ausente, que não interfere no nosso esforço de viver a nossa vida com dignidade.
Esta interacção com o Espírito de Deus é sempre importante, mas é decisiva nas dimensões
mais exigentes contidas na Eucaristia, como é o desafio de viver a vida como um dom
e não tanto como fruição de uma posse. A Eucaristia é o mistério da vida, oferecida
e restituída em plenitude por Aquele a Quem foi oferecida. Essa foi a mensagem mais
exigente de Jesus, que Ele aplicou radicalmente a Si Mesmo: só quem aceita perder
a sua vida, a ganhará.
Esta atitude perante a vida, aceitando-a como dom a Deus e aos irmãos, transforma
profundamente a cultura e a civilização, é o segredo de uma verdadeira cultura da
vida. A sociedade seria diferente se todos vivessem, assim, a sua vida: o sentido
de que cada um de nós vive com os outros e para que os outros vivam. Só esta perspectiva
generosa na maneira de viver nos levará a descobrir a dignidade sagrada da nossa vida
e da vida dos outros.
A Eucaristia encerra ainda outro valor importante: a confiança e a humildade com que
nos emprenhamos na construção de um mundo novo. Na Eucaristia estamos todos como pecadores
convertidos e em busca de conversão. As nossas fragilidades não impedem a grandeza
do dom. Isso leva-nos a acreditar que, a partir da Páscoa de Jesus Cristo, o futuro
da humanidade tem de ser positivo, sejam quais forem os males que ainda tem de sofrer.
Em cada Eucaristia experimentamos e celebramos as primícias de um mundo novo. E a
esperança é um valor decisivo na construção da História.
As atitudes que a Eucaristia inspira
4. Por tudo isto, a Eucaristia impele-nos à acção; há atitudes concretas do nosso
agir sugeridas pela Eucaristia. Antes de mais, a experiência da vida como comunhão
de amor, com Deus e com os irmãos. Da Eucaristia partimos decididos a vencer a solidão
e os egoísmos, e a confiar, partilhando. Como diz a Escritura, essa comunhão é, antes
de mais, com Deus Pai e com o seu Filho Jesus Cristo. A experiência da fé ganha densidade
na comunhão trinitária e a própria vida torna-se desafio de radicalidade e de profundidade
progressivas.
Na celebração da morte do Senhor, que se resolve na ressurreição, nós descobrimos
a fecundidade do sofrimento e começamos a viver a nossa própria morte. A sociedade
transformar-se-ia positivamente se se descobrisse esta fecundidade misteriosa do sofrimento,
momento de oferta da própria vida, o que não nos dispensa de procurar resolver ou
mitigar o sofrimento dos irmãos.
Sobretudo a Eucaristia reconduz à sua densidade de experiência presente a esperança
na vida eterna. A Igreja celebra sempre a Eucaristia “até que Ele venha”. A consciência
de uma unidade entre o presente histórico e o futuro escatológico, podemos aprendê-la
na Eucaristia. Torna-se tão pesado viver a nossa vida como se estivéssemos prisioneiros
do tempo e da história, sem a alegria de pressentir que agora estamos já a construir
o futuro definitivo que, em Cristo, pode ser radioso e plenamente feliz!
Os propósitos de vida que a Eucaristia suscita
5. Da celebração eucarística, pelos valores que ela encerra e pelas atitudes que inspira,
os cristãos partem animados pelos propósitos de vida, que significam, em cada momento,
o novo chamamento de Deus. Podem ser tantos, quantas as exigências da santidade, que
vão desde a exigência do amor fraterno, de uma maior disponibilidade para a oração,
sobretudo sob a forma de adoração eucarística, e a determinação de viverem a sua vida
com a pureza e autenticidade exigidas pelo mistério que celebram. Mas há um propósito
que, na sequência de quanto acabamos de dizer sobre a Eucaristia e a transformação
da cultura e da história, merece ser suscitado e valorizado: o propósito de ser corajosamente,
no meio do mundo, testemunhas activas desse mundo novo, realização do Reino de Deus,
que a Eucaristia celebra e anuncia. Numa palavra, o propósito da missão no meio do
mundo.
A missão evangelizadora da Igreja no mundo, realiza-se, quer através de acções específicas
de pastoral evangelizadora, quer através da presença, porventura silenciosa, dos cristãos
inseridos no conjunto da sociedade, vivendo o desafio da vida colectiva, com as dimensões
éticas que a inspiram, movidos pelo Espírito de Jesus e em coerência com a Eucaristia
que celebram. A própria vida no mundo pode e deve ser um testemunho de fé.
Todos nós sabemos que a nossa sociedade tem mudado neste aspecto os valores e os critérios
éticos que inspiram e justificam as atitudes. E algumas concretizações dessa mudança
chocam-nos, a nós os cristãos, quando tocam em dimensões da vida que nós sempre considerámos
a partir da verdade que nos vem de Deus e da sua criação. Mas não devemos reagir a
essas situações como se elas fossem apenas o resultado da fraqueza dos homens. O que
verdadeiramente está a mudar é a cultura da nossa sociedade. E a cultura, que é a
alma da história, harmonia resultante do pensamento livremente expresso e do conjunto
de decisões da liberdade, quer das pessoas, quer das instituições, é o quadro de referência
que inspira as atitudes, os comportamentos e as decisões. Ora a mutação cultural e
a qualidade da evolução da cultura não se decidem por decreto. São o resultado das
atitudes e opções de todos os cidadãos, embora reconhecendo que há intervenções mais
marcantes do que outras. Todos os cidadãos são agentes da mutação cultural. Foi através
dessa maneira cristã de reagir à vida que, ao longo dos séculos, surgiram culturas
de matriz cristã.
Os cristãos constituem, ainda hoje, uma parte significativa da nossa sociedade. Se
eles não abdicarem de estar na vida com os mesmos valores e atitudes com que celebram
a Eucaristia, a sua influência na mutação cultural pode ser decisiva. Dada a matriz
cristã da cultura da nossa sociedade, nem serão previsíveis choques culturais entre
os valores em que se inspira o todo da sociedade e essa coerência dos cristãos com
uma visão da história que brota do mistério pascal. Na Eucaristia descobre-se a plenitude
desses valores e a fonte da sua harmonia, que é Cristo ressuscitado, Senhor da História.
E esta coerência dos cristãos é a sua missão no meio da cidade dos homens. Em cada
Eucaristia eles são enviados para o mundo para continuarem a lutar por essa nova inspiração
da História.
Sé Patriarcal, 20 de Março de 2005,
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca